Seria então a ciência tão diferente assim da ficção científica? Se não, por que não deixar que vivam juntas?
“And all the science I don’t understand
It’s just my job five days a week
A rocket man
Rocket man”– Elton John
Num belo dia, enquanto os cientistas, pesquisadores, mestres e doutores, calculavam a trajetória de uma pipa numa aula de pós graduação, uma revelação surpreendente atingiu os laboratórios de todo o mundo: a ciência estava tendo um caso tórrido com a ficção científica. Sim, caros leitores, o relacionamento proibido entre o rigoroso e sério método científico e a imaginativa e irreverente ficção científica estava prestes a ser desvendado.
Ficou curioso? Eu também.
Como (ainda) não custa sonhar, que bom seria se os textos científicos tivessem introduções como essa em que a criatividade e as emoções exploram a materialidade assim como a água explora os caminhos por onde dá seus passos. Mas esse tom, essa poética que aflora da interação entre as moléculas de hidrogênio e oxigênio que compõem a água só trará interesse àqueles resistentes em separar a ficção, a fantasia, a imaginação das palavras científicas. E também trará apenas três opções para os aventureiros da linguagem científica: ou você se torna um poeta, ou você se torna um cientista, ou você se torna um rabugento que tenta defender uma linguagem científica mais acessível. E se nada disso der certo você pode utilizar da escrita de alguém, na maioria das vezes já falecido e famoso, para exemplificar seu ponto de vista.
Gaston Bachelard (personagem real que parece ter saído de alguma fábula) é uma figura fascinante, dividida entre duas fases, como se tivesse um duplo, à semelhança de Jorge Luis Borges no conto “Borges y yo”. Durante o dia, Bachelard é o cientista rigoroso, analisando com precisão e objetividade, como ocorre em O Novo Espírito Científico, livro no qual ele critica o uso de uma linguagem carregada de subjetividade que pode obstruir o trabalho científico. Ele defende uma expressão precisa e objetiva, essencial para evitar ambiguidades e garantir clareza e rigor.
Mas, à noite, Bachelard se transforma. Torna-se o poeta do imaginário, permitindo que sua escrita flua livremente, rica em imagens e simbolismos, como a água que percorre os caminhos com suavidade e força, explorando as profundezas da psique humana. Em, por exemplo, A Água e os Sonhos, ele abraça a subjetividade e a criatividade, revelando a beleza poética escondida na interação entre moléculas d’água.
Veja também:
>> “Belchior canta o método científico“, por Antonio Neto
>> “Primeiro sinal. Segundo sinal. Terceiro sinal…. Dramaleão!“, por Vanessa Ribeiro
A ironia é que, apesar de sua precisão científica diurna, é seu lado noturno, poético e imaginativo, que nos leva pelo percurso de seu rio de forma encantadora. Mesmo duro como o gelo no uso de suas palavras científicas, Bachelard nos permite sonhar, explorando a materialidade com a mesma liberdade que a ficção científica explora universos desconhecidos. E, assim, ele nos mostra que, na escrita, como na vida, podemos caminhar com nosso duplo – cientista e poeta, rigoroso e imaginativo, diurno e noturno. Lindo, não é mesmo? Um conto de fadas científico. Mas ainda é uma leitura truncada, difícil como o último chefe de um jogo de videogame. Por que, raios e trovões, não podemos ao menos escrever em periódicos científicos algo como:
Enquanto as equações alucinavam na lousa do laboratório e os alunos tentavam seguir o ritmo da pipa, um computador ultrapotente sussurrava poesias cósmicas ao telescópio. As fórmulas, apaixonadas, escapavam dos livros para protagonizar aventuras espaciais. A química, de mãos dadas com ciborgues galantes, misturava elementos improváveis. E, assim, romanticamente, o universo científico se rendeu ao fascínio das estrelas, provando que até a lógica precisa de um pouco de magia.
Por que a linguagem científica não se rende à inspiração da ficção? Ah, mas a linguagem científica, desde que ela surgiu, sabe como é, funciona, portanto, devemos respeitar a antiguidade, ou você quer ser punido por pecar e ser pego e crucificado pelos pares científicos? O inferno onde nossos currículos lattes são ridicularizados e pregados na cruz do esquecimento é logo ali, depois da encruzilhada entre o que é ficção, belo, poético, de um lado, e o que é ciência, do outro. E quem fica no meio paga o preço e se isola num caminho onde a água secou e os sonhos fugiram. E os textos tendem a não ser nem uma coisa e nem outra. E o espanto causado pela dura língua da ciência assusta os interessados por ela; interessados esses que temem suas línguas serem queimadas enquanto escutam: farsante!
E mais, diria o falastrão autor deste texto: como não sei escrever bonitezas, essas coisas de arte, de invenção, poesia, não tenho condições de elaborar meus pensamentos dessa maneira. Continuarei essa fala de outra forma… mais, digamos, áspera. Pois assim fui doutrinado e, merecidamente, tive minha língua queimada. É o meu papel de pseudocientista, ora, e se fosse um papel diferente, seria daqueles bens chinfrins, fajuto no carácter, de menestrel; e como não o sou, deixo aos bons de palavra, como Ziggy Stardust, a ficção científica.
Infelizmente para ser aceito e lido no meio cientifico devo dizer as coisas diurnas e cinzas dos homens ao invés das coisas noturnas e coloridas do mundo: “À luz de”, “Não obstante”, “Cumpre ressaltar”, “Destarte”, “Em função de”, “Faz-se mister”, “Outrossim”, “À guisa de”, “No que concerne a” , “Torna-se imperioso”, “De sobremaneira”, “Em última análise”, “No intuito de”, “À medida que”, “Seja como for”, “Face a”, “Em virtude de”, “Em que pese”, “Tem-se que”, “Por conseguinte”. Tais expressões corriqueiras de manuscritos científicos, dentre tantas outras, ressoam como se tivessem sido ditas pelo doutor Simão Bacamarte ou algum outro tipo de empreendedor cuja slogan poderia ser “Aprenda a usar palavras difíceis e transforme-se em culto em 5 passos”.
Para Isabelle Stengers, a ciência não é um empreendimento isolado ou puramente objetivo. Ela é uma prática situada, rica em contexto e em interações sociais, que deve ser entendida e valorizada em toda a sua complexidade. Stengers defende uma abordagem pluralista e reflexiva da ciência, que reconhece suas limitações e responsabilidades, e que se abre ao diálogo com outras formas de conhecimento e com a sociedade. Sua visão promove uma ciência eclética, ética e inclusiva, que está atenta aos problemas e incertezas do mundo real. Parece ficção né? Mas é real! Tá lá no livro Outra ciência é possível.
No ensaio “Manifesto Ciborgue”, Donna Haraway argumenta que a ficção científica pode revelar as construções sociais e tecnológicas que moldam nossa realidade. Por meio da narrativa ficcional, é possível questionar as normas estabelecidas e visualizar novas formas de existência, em que os limites entre humano e máquina, natural e artificial, são constantemente desafiados e redefinidos. Haraway sugere que a ficção científica é uma ferramenta vital para explorar e expandir os limites do conhecimento científico. Ela vê a ficção científica não apenas como uma forma de literatura, mas como uma prática epistemológica que permite a exploração de possibilidades alternativas, criando um espaço para imaginar futuros diferentes e desafiadores. Assim, a linguagem científica poderia se beneficiar ao incorporar elementos narrativos que tornam seus conceitos mais acessíveis e engajantes para o público em geral.
Seria então a ciência tão diferente assim da ficção científica? Se não, por que não deixar que vivam juntas? Qual o problema que não pode ser resolvido com um pouquinho de criatividade? Se realmente o que incomoda o dito cientista/pesquisador pode ser uma linguagem mais amigável, sensível, arqueável – ou seja, diferente do costume que se fez, a mãos abastadas e pesadas, o rotineiro de um agora ocorrido há muito, muito tempo atrás… – sinto muito, cientista/pesquisador, ô Seu Doutor, vá procurar uma boa terapia. Não é ficção nenhuma que, como reflexo social/cultural, a ciência está atendendo ao chamado da acessibilidade pelas vias de uma língua nativa que resista às másculas imposições dos antigos fantasmas que andam por aí arrastando seus jalecos pelos corredores dos laboratórios ou sentados atrás dos seus computadores prontos para intervir nos textos que chegam a suas mãos, para corrigir o que não corresponde à arcaica expectativa do linguajar das múmias cartesianas.
Uma língua que não conte a estória de um herói e sim da importância do entorno, do cenário, da paisagem. Há heróis nos textos científicos?, indaga-se o novato pesquisador. Sim, jovem, e o herói está escondido na terceira pessoa. Assim fica mais suportável o fato de o autor extravasar seu ego pelas citações. E tomar direta ou indiretamente as palavras de outrem, até mesmo o número de suas páginas, não difere das ficções calcadas na trajetória do herói que desbravou um mundo desconhecido com um pedaço de pau na mão e conquistou seu lugar, pelas regalias da brutalidade, (aqui o fajuto menestrel coloca o punho cerrado em frente a boca e tosse de deboche) de direito.
Ignorar o heroísmo científico não significa abandonar a rijeza da ciência mas, sim, apresentar conceitos complexos de maneira a afinar sua linguagem com um diapasão que dispõe de notas mais animadas que lá e, seja lá de onde veio a chatice embriagante dos textos científicos, dar novas vivas cores aos desbotados escritos. Retirar o herói da cena é levar ao leitor cenários onde ele consiga se ver usufruindo do pensamento científico. A ficção científica já faz isso de maneira eficiente, utilizando de metáforas e narrativas para tornar conceitos abstratos tangíveis e relacionáveis. Quer exemplos?
Suzette Haden Elgin, em Língua Nativa, tece uma narrativa na qual a linguística e a ficção científica se encontram de maneira a nada acobertar em reticências. Situado em um futuro em que a linguagem tornou-se uma ferramenta de poder e resistência, o romance explora a criação de Láadan, uma língua projetada para expressar as matizes da experiência feminina. Este conceito não apenas desafia o patriarcado linguístico, mas também destaca como a ficção científica pode inspirar inovações científicas e sociais. Elgin, doutora, sorry, PhD em linguística, por meio da ficção científica, nos faz o convite de reconsiderar as possibilidades de nossa realidade, afirmando que a linguagem, como a ciência, deve evoluir para refletir e moldar-se à pluralidade da humanidade. Língua Nativa é uma obra que exemplifica, didaticamente, a sinergia entre a ciência e a ficção, um tributo ao poder transformador das palavras e ideias.
Ursula K. Le Guin, uma gigante da ficção científica, vê a ficção como uma ferramenta poderosa para a transformação social e pessoal. Para Le Guin, a ficção não é apenas um meio de entretenimento, mas uma maneira de abordar o foro íntimo da condição humana. Em seu ensaio “Why Are Americans Afraid of Dragons?”, ela argumenta que a ficção tem a capacidade de abrir mentes e corações, permitindo que os leitores experimentem outras realidades e, assim, ampliem sua compreensão do mundo. Interessante que para discorrer sobre tal assunto em seu ensaio Le Guin brinca seriamente com a fantasia.
A conexão entre ficção científica e fantasia pode parecer ambígua, mas ambas compartilham a capacidade de desafiar percepções e expandir horizontes. Enquanto a fantasia nos leva a mundos completamente imaginários, a ficção científica nos projeta em futuros possíveis e nos confronta com as implicações do progresso científico e tecnológico. Ambas as formas narrativas possuem o poder de enriquecer a habilidade de assimilar as emoções, motivações e/ou os pontos de vista das pessoas ao apresentar dilemas éticos, sociais e filosóficos em contextos novos e intrigantes.
Veja também:
>> “Em Casa nos Mundos Inventados por Nerds“, por Saladin Ahmed
>> Criadouro | “Do ponto de vista das criaturas fantásticas“, por Redação
A abordagem de Le Guin mostra que não há uma linha rígida separando ficção científica da fantasia; ao contrário, elas se entrelaçam, oferecendo perspectivas valiosas sobre a realidade. Defender a ficção científica com argumentos que também valorizam a fantasia é, portanto, uma maneira de reconhecer que ambas as formas narrativas são essenciais para uma compreensão mais ampla e inclusiva do mundo.
Se nos fosse permitido integrar essa visão ao discurso científico, nos envolveríamos numa análise mais holística, que valoriza tanto os dados concretos quanto as narrativas que os tornam significativos. Por meio dessa união a ciência poderia atender ao chamado da acessibilidade e da transformação social, inspirando novas gerações a explorar e compreender o universo em toda a sua complexidade. Incorporar essa visão à linguagem científica significa reconhecer que a ciência não é apenas sobre dados e números, mas também sobre as histórias que contamos sobre esses dados e números.
A ciência e a ficção científica, portanto, têm um relacionamento íntimo e simbiótico. Esse caso carnal não é apenas um flerte superficial, mas uma união profunda que desafia a compreensão científica tradicional e moralista.
Ao integrar essas perspectivas, vemos que a linguagem científica não precisa ser árida e inacessível, um agrado aos pares. Pode, ao contrário, preferir os ímpares e ser vibrante e envolvente, refletindo a riqueza e a complexidade do próprio processo científico. Adotar uma linguagem mais narrativa e menos formal pode não apenas tornar a ciência mais atraente para os inexperientes, mas também incentivar uma maior participação e interesse pelo campo. Afinal, a ciência, como qualquer outra forma de conhecimento, é uma história que contamos sobre o mundo. E histórias, como bem sabem os mestres da ficção científica, têm o poder de transformar a nossa percepção da realidade.
Portanto, ao acolher a influência da ficção científica e ao adotar uma abordagem mais reflexiva e pluralista, a linguagem científica pode evoluir para ser mais inclusiva e democrática. Isso não significa abdicar do rigor e da precisão, mas sim complementar esses atributos com uma sensibilidade narrativa que torne a ciência mais acessível e significativa para todos. Ao fazer isso, podemos aproximar a ciência do público, desmistificar conceitos complexos e inspirar uma nova geração de pensadores e inovadores. Por meio dessa união de ciência e ficção podemos abrir novos caminhos para o conhecimento e a compreensão, celebrando a imaginação e a curiosidade que são, afinal, a base de todo o progresso científico.
E, quem sabe, um dia, o rabugento pseudocientista metido a menestrel possa concluir seu texto científico da seguinte forma:
Quando a pipa pousou no laboratório e a língua do doutor queimou em 788 °F, num canto, um professor sorriu, observando a cena. Ele sempre acreditou que a ciência e a imaginação não eram opostos, mas sim aliados secretos. Inspirado, começou a escrever um novo artigo científico, desta vez entrelaçando teorias rigorosas com sonhos ousados. Seus colegas, inicialmente céticos, começaram a ler suas palavras com crescente entusiasmo, descobrindo um novo universo onde equações copulavam com constelações e experimentos se transformavam em epopeias.
Naquele dia, algo mudou nos laboratórios de todo o mundo. A ciência e a ficção científica, antes amantes secretos, passaram a caminhar publicamente de mãos dadas sobre as águas. E assim, provou-se que, às vezes, um toque de ficção é tudo o que precisamos para transformar a realidade.