Por uma escrita acadêmica humana: a produção científica e os operários da palavra

O pesquisador tornou-se parte da máquina produtivista, na qual os textos raramente são um reflexo do espírito criativo e sensível

Uma linha de montagem de pérolas | imagem: Justina Kochansky

“Se para tudo existe regra e usura
e olvido e nunca mais e última vez,
quem nos dirá a quem, a esta altura,
sem perceber, já dissemos adeus?”

 – Jorge Luis Borges, ‘Limites”

No conto Bartleby, O escrivão, de Herman Melville, somos apresentados a um grupo de personagens copistas de profissão. Sediados num escritório de advocacia num prédio qualquer de Wall Street, dia após dia eles copiam incessantemente documentos dos processos que o narrador, que é o advogado dono do escritório, precisa elaborar para dar continuidade à burocracia. A cópia necessita ser precisamente igual ao documento original. E assim passam-se os dias até a chegada de Bartleby, o novo copista, contratado para aumentar a eficiência do escritório que está passando por um momento de aumento na demanda do serviço. Num dia de alto desempenho produtivo, como outro qualquer, o chefe do escritório pede a Bartleby uma cópia e, passivamente, Bartleby responde: “Prefiro não”.

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Não faz muito tempo comecei a prestar serviços para um periódico científico. No início fiquei em êxtase. Ora, desde criança adoro revistas e até hoje não consigo mensurar a influência de Peter Parker nessa loucura de escalar paredes para encontrar a leitura desejada. E assim como aquele desajeitado trabalhava no jornal e estudava como melhorar suas teias, eu queria fazer parte daquele colorido universo editorial. Obviamente não lanço teias das mãos e muito menos possuo o tilintante alerta de perigo iminente… mas agora, passado algum tempo do trabalho no periódico, confesso que gostaria de, ao menos, ter um uniforme com uma máquina de escrever desenhada no peito – ok, romântico por demais – gostaria de ter um uniforme com um teclado desenhado no peito; assim, quando estivesse andando pelos corredores dos programas de pós-graduação, após colocar minha máscara coberta de letras fonte Times New Roman tamanho 12, em parágrafos justificados e com espaçamento 1,5 cm, poderia sair gritando: acalmem-se discentes, seus artigos não são ruins, apenas encontraram pareceristas com mau humor e pouco, ou nenhum, senso crítico.

Lógico que o mau humor e/ou o raso senso crítico não são os únicos problemas do encontro das submissões com os pareceristas (por vezes há uma falta de educação monstruosa nos pareceres), mas o caminho até a submissão é muito, muito mais penoso do que aparenta. Você que está lendo essas palavras pode pensar: seu molenga, se você não está preparado para o rigor da avaliação o que você está fazendo no meio científico? Lhe respondo assim, seu homem de pedra: o problema não é o rigor, mas, sim, a relação entre o tempo para produzir o texto e a (suposta) qualidade exigida desses textos durante todo o processo de escrita da dissertação ou da tese.

Essa relação do tempo e da produção textual deixa qualquer um maluco, derretido, abilolado. Uma maneira de escapar, não da loucura produtiva, mas do derretimento das palavras é fazer um texto igual ao outro. Ou um outro texto igual àquele que vimos antes. Se foi aceito daquele jeito será aceito agora. Digo essas coisas porque uma das minhas atribuições no fluxo editorial é justamente organizar os pareceristas por temas e assuntos para a editora-chefa escolher para quem enviar o(s) artigo(s) para correção; depois de corrigidos, envio os pareceres para os autores. No começo dessas atividades, confesso, descobri o quão insensível sou, pois não vi nada que parecia, digamos, ruim.

Entretanto, conversando nos sobrecitados corredores da pós-graduação, aconteceu que eu ouvisse depoimentos frustrados. Um companheiro de mestrado comentou que o artigo dele tinha sido massacrado pelos pareceristas. Uma companheira cursando o doutorado disse que nem resposta da rejeição do artigo obteve. Aquela conversa rendeu pois mais discentes acabaram relatando seus problemas: artigo que foi rejeitado logo na submissão, artigo que foi rejeitado por conta de mau uso de vírgulas, artigo que foi rejeitado por mau uso de preposições, artigo que foi rejeitado por não ter autores cânone de áreas não necessariamente a do manuscrito; artigos rejeitados com “explicações” como: texto frágil, texto labiríntico, texto incorrigível. Nesse interim eu já estava abalado, chocado, pois algumas daquelas pessoas que estavam abrindo seus corações eu conhecia de nome, ora, fora eu que enviei o e-mail da rejeição para aquelas pessoas que agora possuem rostos e vozes!

Uma coisa é você escutar esses problemas de pessoas arrogantes que não têm dúvidas que os mais maravilhosos conhecimentos do mundo passam por suas mentes e que têm absoluta certeza de que são exímios escritores. Outra coisa é você escutar esses perrengues de pessoas que apenas buscam comunicar o que tanto se empenharam para apreender, conhecer, entender. Pessoas que sabem muito bem que a vida acadêmica não é feita apenas de louvores, de sucesso, de meritocracia. Pessoas que precisam publicar seus trabalhos para continuar recebendo a bolsa de estudos. Pessoas que apenas na pós-graduação conseguiram tempo para questionar – ora, infelizmente sabemos muito bem que os boletos fazem parte da gangue dos vilões que roubam a energia que poderia ser empregada para o ato de estudar. E, como a vida acadêmica imita a vida real, a cobrança de produzir mais e mais produtos mesmo diante da rejeição acontece. E o medo de escrever torna-se companheiro de estudos dos discentes.

E foi nesse cenário, entre e-mails de rejeição e desabafos de companheiros, que comecei a perceber o fenômeno que Robson Cruz nomeou no título do seu livro O mal-estar na escrita acadêmica, título do seu livro. Não se trata apenas do bloqueio de ideias ou da dificuldade de começar um parágrafo, mas de uma tensão constante entre a expectativa de qualidade e o ambiente institucional que transforma a escrita em um produto, um resultado, uma métrica. Para quem vive a academia, a escrita deveria ser um espaço de reflexão e criação, mas ela é frequentemente reduzida a um mecanismo de sobrevivência, no qual o que importa é atender às exigências da máquina produtiva, independentemente do que se perde nesse processo.

No livro, Cruz reflete sobre como a escrita, antes de ser um ato criativo, é sequestrada pelo produtivismo. Nos corredores dos programas de pós, isso se materializa em desabafos como “meu artigo não é bom o suficiente” ou “eu nunca vou conseguir escrever como aquele autor que citaram na rejeição”. A escrita, nessa lógica, deixa de ser um espaço de expressão singular e se torna um molde a ser preenchido. Afinal, para sobreviver ao “alto desempenho”, não basta saber; é preciso escrever no formato certo, no ritmo certo e com o vocabulário certo não do método científico, mas da interpretação do método científico do parecerista escolhido para a correção do artigo. E, nesse ajuste, o que era para ser uma narrativa pessoal sobre um achado ou uma pesquisa se transforma numa réplica genérica de textos passados, aprovados por pareceristas cujo humor é uma roleta russa.

Mote dos competitivos, o alto desempenho exige extremos individuais, individualmente, de cada indivíduo. “Alto desempenho” também significa alta velocidade, movimento semelhante às esteiras de produção fordistas. O indivíduo isola-se para acompanhar a velocidade da esteira de produção, pois, se ele não fizer exatamente como lhe é descrito, pode prejudicar a cadeia produtiva e, consequentemente, todos os envolvidos no processo. A exigência de alto desempenho intimida ao mesmo tempo o corpo e a mente. A esse modelo, caracterizado pela autoexploração e pelo autoesgotamento, Byung-Chul Han chama sociedade do cansaço.

E na sociedade do cansaço a autoexploração se camufla sob a ilusão de liberdade. Somos nossos próprios patrões, nossos próprios algozes, pressionando-nos a produzir mais, a sermos mais rápidos, mais eficientes, mais impecáveis. Na academia, isso se traduz em textos magnânimos que devem nascer de mentes exaustas; textos ajustados a prazos impossíveis e padrões inalcançáveis. Ser o orientador de si mesmo. Mas o esgotamento não é apenas de quem escreve; ele alcança também aqueles que deveriam acolher, orientar e avaliar esse trabalho — os pareceristas, que, sob a mesma lógica de produtividade, se tornam, muitas vezes, agentes da alienação e do desânimo.

Insisto nos pareceristas pelo seguinte: se você acha, ou tem certeza, que apenas professores doutores consagrados corrigem os artigos, sinto em lhe dizer: você está (muito) equivocado. Para atender a demanda da Scielo de artigos publicados por ano os periódicos científicos necessitam de muitas, muitas pessoas capacitadas para o ato do parecer. Logo, se apenas os grandes nomes de cada área fossem os responsáveis pelos pareceres nenhum periódico científico sobreviveria. E digo mais: muitos nomes desconhecidos fazem pareceres melhores que os grandes nomes. E digo ainda mais: nomes desconhecidos e reconhecidos, infelizmente, têm a capacidade de regurgitar em seus pareceres as mais insolúveis correções simplesmente por não aceitarem que (e tudo bem) não conhecem do assunto e tentam, quando não rejeitam o artigo, enfiar seus próprios trabalhos e autores que lhe são objetos de estudo; a esses pareceristas, digo: façam o favor, a si mesmos, de rejeitar o parecer; o artigo não será perdido, apenas será encaminhado à outra pessoa parecerista.

Nossa, e como você tem a audácia de dizer tais coisas sobre os pareceristas? Como assim eles não entendem o que leem? Ué, o currículo Lattes está aí para isso, para nos mostrar o tema e o assunto que trabalhamos em nossas pesquisas e quais trabalhos publicamos; simples assim. Pareceristas não são escolhidas à toa. Os artigos são enviados para receber o parecer de pessoas cujo currículo Lattes confere com o tema e o assunto do artigo. Mas é aquilo: uma coisa é um currículo, que, apesar do que está escrito, é mudo; outra coisa é a pessoa de verdade que fala em voz alta pela palavra escrita. E são esses tipos de palavras de quem um dia foi, ou é, discente, que alienam. Sim; quem um dia foi, ou é discente, será parecerista um dia.

Robson Cruz também aponta que a escrita acadêmica é atravessada pela alienação, em que a relação do autor com o texto muitas vezes se dilui. Quem nunca terminou um artigo sem reconhecê-lo completamente como seu? Entre as revisões impostas por pareceres e os ajustes para adequação de uma linguagem do século XVIII, o texto vai perdendo sua alma, seu propósito inicial, e se torna um amontoado de palavras, métricas e referências que satisfazem apenas aos espíritos dos falecidos no século XVI, mas não necessariamente o autor. E esses são apenas alguns motivos que levam muitos discentes (eu, inclusive) a se sentirem derrotados antes mesmo de submeterem seus artigos. Novamente, não é o rigor o problema, como eu disse ao homem de pedra, mas sim a relação entre o tempo e o que se espera produzir: textos excessivamente padronizados, alinhados à lógica da eficiência e da comunicação imediata que caracteriza a sociedade do cansaço.

E é aqui que o “mal-estar” mais nos atinge, porque não se trata apenas de esforço, mas de uma configuração mecânica que parece desconsiderar a trajetória de quem escreve. Como Cruz aponta, a escrita acadêmica raramente reconhece os obstáculos prévios que cercam os escritores: a formação desigual, os bloqueios emocionais, a pressão por publicar para garantir a bolsa. Para muitos o processo de escrever não começa no teclado, mas na superação de barreiras que a própria academia raramente reconhece. Assim, não é apenas sobre vírgulas ou cânones, mas sobre uma estrutura que exige muito e apoia pouco, que celebra a produtividade enquanto ignora o custo humano de sua manutenção. E nesse movimento de mecanização somos obrigados a não pensar que o labor em si de qualquer pessoa que opta pela ciência é escrever.

Escrever é desnudar o mais íntimo dos pensamentos; exposição da mais gritante ideia. Escrever é dar forma às mais diversas formas do caminho do raciocino; apresentação da inquietude. Escrever é trabalho conjunto da mente e do corpo; costura de memórias em papeis eletrônicos. Escrever é artesanato; ciência pura do ato. Escrever é reescrever mundos; desafio às vigilantes normativas políticas. Para os românticos a escrita é algo inato, logo, embaraçoso de se aprender. Ora, como você não sabe? Para os realistas a escrita é algo técnico e objetivo: como você não domina o método? Para os bovaristas a escrita é uma maneira de ser aquilo que não se é. Ora, como você não é capaz de imitar a coisa? Para a academia a escrita é um produto; prosa de alto valor, esse bitcoin científico. Assim, os escritores acadêmicos encontram-se na esteira da produtividade, pressionados a produzir artigos, dissertações, teses e relatórios que satisfaçam métricas institucionais que a muito precisam ser revisitadas.

Escrever, para aqueles que sentem ou estão no mal-estar, deixa de ser um ato de contemplação ou criação singular, tornando-se uma tarefa de desempenho técnico, medida pela quantidade e impacto imediato, muitas vezes negligenciando a profundidade ou a originalidade. A escrita acadêmica é moldada pela lógica do alto desempenho e a constante validação em rankings e avaliações que substituem o espaço da reflexão, da experimentação e da falha. Assim, o escritor acadêmico é forçado a operar como uma engrenagem da máquina produtivista, em que cada texto é um tijolo na construção de uma carreira, mas raramente um reflexo autêntico do espírito criativo e sensível.

E nessa jornada, como Bartleby, muitos discentes acabam dizendo “prefiro não”. Não porque faltam ideias ou esforço, mas porque a máquina assim configurada transforma o ato de escrever em algo tão mecânico e alienante que o impulso vital da criação é sufocado. Afinal, quantos artigos rejeitados são realmente ruins, e quantos são apenas reflexo de um arcaico arranjo que não sabe ler a pluralidade de vozes que batem à sua porta? Essa é a dúvida que carrego comigo enquanto, nos corredores do periódico, organizo novos e-mails e envio os pareceres para os autores. Não heroico como Peter Parker, mas como alguém que, às vezes, em suas próprias limitações, gostaria de gritar aos ventos por um sentido mais humano da escrita acadêmica, tanto para quem escreve quanto para quem lê.

Precisamos dar tempo à escrita acadêmica e, por consequência, à produção científica como um todo. A lógica produtivista nos obriga a seguir modelos inumanos, distantes da singularidade que deveria habitar cada texto. A escrita acadêmica não pode ser tratada como um simples item de linha de montagem, porque escrever, antes de tudo, é um ato humano — é o reflexo da experiência, da luta por compreender o mundo, das incertezas que nos movem. Não podemos permitir que o valor de um texto seja reduzido a métricas ou ao impacto de um periódico. A escrita precisa ser devolvida ao seu espaço de criação, onde a profundidade e a singularidade sejam mais importantes do que a conformidade com normas rígidas originadas dos valores e verdades dos olhos que corrigem os textos.

Humanizar a produção científica é, antes de tudo, resgatar a conexão entre o autor e o que ele escreve. Isso significa valorizar o processo, não apenas o resultado. Significa reconhecer que escrever é um trabalho complexo, que exige tempo, dedicação e liberdade para errar, reescrever e experimentar. É reconhecer que nem todos possuem as mesmas condições de partida — e que, por isso, precisamos de braços que acolham, que abracem e não afastem, que incentivem a expressão e não a padronização. Afinal, a ciência, em sua essência, só avança quando é diversa, quando é plural, quando dá espaço ao que é original, ao que não se encaixa nos moldes já estabelecidos.

E para isso é preciso também humanizar os pareceres. Pareceristas não são inteligências artificiais de correção de textos e os autores não são meros fornecedores de conteúdo. O parecer deveria ser um espaço de diálogo, uma oportunidade de aprendizado mútuo. Críticas podem ser construtivas ao invés de focar na destruição de almas, em outras palavras, apontar falhas pode ser feito sem desumanizar quem escreveu. Assim como a escrita precisa de tempo, a avaliação precisa de empatia. Não é apenas sobre aprovar ou rejeitar um artigo, mas sobre contribuir para que ele seja melhor, mais claro, mais emocionante — sem jamais apagar a voz de quem o criou.

Por isso, em vez de forçar a escrita acadêmica a caber em um molde rígido, por que não reconfigurar a máquina produtiva? Uma reconfiguração que valorize o pensamento crítico e criativo acima das métricas, que incentive a troca de ideias em vez da competição, que reconheça o trabalho da escrita como uma parte essencial do fazer científico, não como uma engrenagem descartável da máquina produtivista que nos mastiga como se fôssemos sacos amorfos de carne. Talvez, então, a academia possa ser um lugar onde o “prefiro não” de Bartleby se transforme em “prefiro assim”. Não porque a máquina obriga, mas porque escrever volta a ser um ato de liberdade e de criação.

Autor

  • Biobliotecário formado pela Pontíficia Universidade Católicas (PUC) de Campinas. Mestrando em Ciência da Informação pela Universidade Estadual de São Paulo (Unesp). Infelizmente não tem imaginação e pesquisa afetos e suas relações informacionais com Estética. Coordenador da equipe responsável pela digitalização e organização do acervo pessoal da escritora e poeta Hilda Hilst. Voluntário da Biblioteca Multicultural Obá Biyi. Nas poucas horas vagas faz serviço terceirizado de organização de pareceristas para periódicos científicos.

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