Dilúvio químico

Black Kamen Ryder, Monstro do Pântano – e agrotóxicos

Uma crônica/ensaio quebradiça e distópica sobre um mundo cultivado por agrotóxicos | imagem: Emanuel Borges da Silva

“O jornal repete o atentado de um mundo que eu mesmo fiz”

O cheiro do ralo, Lourenço Mutarelli

21:18/08-10-2024

Enquanto procuro bibliografias, entre um gole e um trago, minhas mãos se fecham em torno de um caderno antigo, verde musgo e espiralado, como um relicário de tempos sombrios. O nome Syngenta repousa em baixo relevo, frio como uma marca de possessão. Folheio suas páginas, e os cálculos de doses de inseticidas e esquemas de ensaios parecem manchas de um passado envenenado.

O celular pisca.

As recordações do google são uma merda. Parece até piada de mau gosto ou alimento para teorias da conspiração. A foto que o google me apresenta (logicamente para me deixar feliz) sou eu paramentado com E.P.I. (equipamento de proteção individual).  Macacão verde (feito para trabalhos com produtos químicos), blusa de aplicação, luvas, máscara e óculos de proteção. Em Petrolina, numa roça de manga. Num calor de 43 graus celsius.

22:06/08-10-2024

Rabisco no meu caderninho preto do trabalho de agora a estrutura do texto que pretendo enviar para Úrsula. Aceito a sugestão divina do google. Vai ser um texto sobre a falha moral que carrego pelo genocídio de centenas de milhares de insetos. Anoto o que pode ser interessante ao leitor sobre o modo de ação das moléculas dos agrotóxicos. Acredito que câncer seja senso comum sobre esses produtos químicos.

22:47/08-10-2024

Até hoje adoro Kamen Rider (obrigado TV Manchete!). A reinterpretação da série, intitulada Kamen Rider Black Sun é fenomenal. A trama segue dois amigos, Kotaro Minami (Kamen Rider Black Sun) e Nobuhiko Akizuki (Kamen Rider Shadow Moon), ambos transformados em Kaijins (na série criaturas mutantes; no mangá os Kaijins são ciborgues) por uma organização secreta chamada Gorgom. Com o passar dos anos, eles se tornam inimigos, divergindo em suas crenças sobre como lutar contra a opressão e a injustiça. Para completar esse bololô, tanto Kotaro quanto Nobuhiko se transformam em homens-gafanhoto.

E, então, me imagino como um vilão perfeito, envolto em meu EPI, uma bomba costal, com o aplicador nas mãos espalhando o horror invisível dos organofosforados e neonicotinoides. Um simples borrifo, e esses monstros mutantes se contorceriam em agonia, suas transformações traídas por venenos que penetram, corroem e devoram tudo. A podridão é imparável, o efeito irreversível, e ninguém escapa de um destino tão grotesco. Afinal, veneno não faz distinção — seja humano, inseto ou homem-gafanhoto, o destino é o mesmo: desintegração lenta e agonizante.

23:39/08-10-2024

No interior do caderno velho há uma tabela que eu usava como guia para realizar os experimentos, os testes de eficácia, no campo:

A substância ativa é o coração sombrio de qualquer composto químico, o verdadeiro agente da destruição. Nos inseticidas, como os neonicotinoides e organofosforados, ela é a essência que caça, invade e liquida suas vítimas com precisão letal. Os outros componentes são meras sombras, suportando o verdadeiro predador oculto, que se infiltra nas criaturas, dissolvendo suas entranhas, corrompendo suas células até que o último sopro de vida seja arrancado de seus corpos frágeis. É o veneno que caminha nas veias invisíveis do caos.

Qual dessas substâncias seria interessante aplicar nos homens-gafanhoto? Ah, tanto faz! O que importa é como eles funcionam! Segue o que importa:

Neonicotinoides são uma classe de inseticidas neuroativos que afetam o sistema nervoso dos insetos, incluindo gafanhotos, interferindo na transmissão de impulsos nervosos, o que pode levar à paralisia e, eventualmente, à morte.

Organofosforados são uma classe de inseticidas que agem inibindo a enzima acetilcolinesterase, essencial para o funcionamento do sistema nervoso dos insetos. Ao bloquear essa enzima, os organofosforados causam uma acumulação de neurotransmissores, resultando em paralisia e, eventualmente, na morte do inseto.

00:13/09-10-2024

Intoxicado pelas lembranças, resolvo reler as passagens grifadas do novo livro de Larissa Bombardi, Agrotóxicos e colonialismo químico. Larissa é uma das maiores expoentes acadêmicas na luta contra o uso de agrotóxicos. Devemos lembrar que fora da academia também há aqueles e aquelas que lutam para a manutenção de uma vida regada a água e não a veneno. Contudo, infelizmente, o destino dessas pessoas tende a ser a morte. Zé Maria do Tomé, ativista contra os agrotóxicos, foi assassinado em 21 de abril de 2010, em Limoeiro do Norte (CE), com 25 tiros. Zé Maria denunciava a contaminação causada pela pulverização aérea de agrotóxicos na Chapada do Apodi. Ele foi o primeiro a levantar essa questão na região. Ao menos a luta não foi em vão, tendo como um dos resultados a lei 16.820, que veda a pulverização aérea de químicos no estado do Ceará desde 2019.

Entretanto, a pulverização aérea, tanto “legal” quanto ilegal, ainda ocorre amplamente no Brasil, com o glifosato sendo uma das substâncias mais utilizadas. O glifosato pertence à classe dos herbicidas, especificamente dos herbicidas não seletivos, o que significa que ele pode matar uma ampla variedade de plantas. Ele age inibindo uma enzima essencial no processo de crescimento das plantas (EPSP sintase), afetando tanto culturas indesejadas quanto vegetação nativa. Larissa Bombardi critica o uso do glifosato no Brasil, destacando a grande disparidade nos limites permitidos em comparação com a União Europeia, onde a quantidade permitida na água potável é cinco mil vezes menor. Essa situação, segundo ela, expõe a população, especialmente crianças e trabalhadores rurais, a riscos elevados. O glifosato, considerado “potencialmente cancerígeno” pela Organização Mundial da Saúde (OMS) desde 2015, é amplamente utilizado no Brasil, o que Bombardi classifica como parte de um processo de “colonialismo químico”, em que países desenvolvidos exportam substâncias tóxicas para nações com regulamentações mais fracas.

…e aqui estou, minhas sinapses lutando para se agarrar a algum fragmento de lucidez, enquanto fantasmas de dias passados de empresa multinacional sussurram como usar as moléculas de agrotóxicos para dizimar pragas… o horror é tão profundo quanto os relatos sombrios dos assassinatos de líderes comunitários.

Minhas mãos tremem ao pousar sobre volumes do Monstro do Pântano. Este avatar do Verde, uma manifestação vegetal nascida de um acidente químico, defende a própria essência da Terra. Mas, diante do glifosato, até ele, guardião ancestral, veria seu colapso, como uma árvore que sangra seu último suspiro. O vilão Arcane, com sua magia sombria, não se compara ao poder impiedoso do glifosato que silencia o que é vivo, arrastando-o para a escuridão.

A morte física que o glifosato traz reverbera no espírito do que um dia foi vivo. Seu efeito é profundo, sutil e implacável. Ao inibir a enzima vital das plantas, a EPSP sintase, ele as despoja da capacidade de produzir aminoácidos essenciais à vida. Um processo de lenta e silenciosa desintegração toma conta. O ciclo de crescimento é interrompido, a regeneração se torna impossível, e, assim como o corpo humano sem seus nutrientes essenciais, a planta sucumbe, cada célula murchando, morrendo de dentro para fora.

01:26/09-10-2024

Admito que a escuridão desse tema me arrasta por abismos de desolação enquanto vagueio envolto em névoas densas, exaladas pelos meus pulmões, e turvas visões alcoólicas como se elas fossem a única âncora que me resta para seguir um raciocínio lógico nesta crônica que mistura ciência e loucura. Porém, a embriaguez da mente já não consegue ocultar a origem da ideia — uma visão perturbadora que equivale os humanos a insetos, criaturas minúsculas diante das forças indescritíveis que regem uma agricultura imunda, movida pelos venenos que, como deuses cruéis, devastam tudo ao seu redor.

02:15/09-10-2024

Os agrotóxicos, no início, eram uma resposta simples às forças naturais, uma tentativa do ser humano de dobrar a natureza à sua vontade de erigir barreiras invisíveis contra as pragas que rastejavam pelas sombras dos campos. Substâncias arcanas e compostos elementares de eras esquecidas já eram usados, mas com o avanço da ciência química, o homem começou a invocar novos horrores—compostos como o DDT, que não apenas exterminavam pragas, mas permaneciam como espectros, envenenando o solo e o ar por gerações. E, assim, o Zyklon B emergiu das trevas mais profundas da alquimia moderna, um instrumento de morte, nascido do desejo de controlar o que jamais deveria ser tocado. Pervertido e distorcido desde sua concepção, seu propósito original fora diluído no abismo da insanidade humana. Na escuridão sufocante das câmaras de Auschwitz e Majdanek, o Zyklon B não apenas matou corpos, mas desnudou almas, revelando os horrores incomensuráveis que surgem quando o ser humano ousa brincar com forças incompreensíveis, e o próprio universo parece zombar de sua fragilidade.

Aqui, o progresso químico não traz bioluminescência, mas o encontro com os terrores cósmicos que jazem no limiar do desconhecido, sussurrando segredos de devastação e aniquilação. O que começou como uma simples ferramenta de controle sobre as pragas tornou-se a chave para liberar horrores inomináveis sobre a humanidade, desafiando a própria sanidade dos que testemunharam seu poder.

03:42/09-10-2024

Fazia tempo que não chovia.

Muito pouco resta das memórias devoradas pelo expurgo da escrita, da bebida e dos spliffs. Não sou de esquecer fácil das coisas, mas, como uma praga humana qualquer, deixou-me tomar pelo recalque e não penso, escondo, o que me envenena por dentro. Porém, tenho lembranças suficientes para afirmar: é a primeira vez que vejo a chuva desse jeito que ela cai.

Atormentada.

Dilacerantes, relâmpagos realizam a vivissecção das nuvens. Explosões de luz colorem o firmamento de rubro e roxo expondo o interior dos cumulus pré-cadáveres. E como os pingos de chuva açoitando violentamente a porta e as janelas, arremessados pelos cabelos por uma força invisível e misteriosa tomada pelo vento, penso, no ecoar sombrio da névoa de uma lembrança lambida pelo fogo fátuo da culpa: chuva de agrotóxicos.

04:20/09-10-2024

A chuva, agora diluída em mistérios químicos, caía como um presságio, suas gotas impuras eram mais que apenas água — eram fragmentos de um ciclo viciado, encharcando o solo com a promessa envenenada de destruição. No balanço das folhas, sentia-se o peso daquilo que já não é natural, como se cada planta e cada inseto compreendesse o seu destino, condenado por mãos humanas, uma praga que nunca deveria ter sido desencadeada.

Os pingos escorriam pelas janelas, distorcendo o mundo além do vidro, tal como nossas percepções corrompidas. Fiquei ali, imóvel, ouvindo o som da chuva, que trazia consigo uma voz ancestral, abafada, como um eco distante. Não era a voz de intimação. Era um lamento. Um pranto surdo por tudo o que morrera, por tudo o que fomos responsáveis em destruir.

Pensei em como cada molécula de veneno representava uma morte lenta, uma gota de sofrimento invisível que escorria das veias da Terra, misturando-se com as raízes, com o sangue dos insetos, com as águas que um dia foram limpas.

No meu peito, o peso da culpa era mais denso que a própria chuva. A máscara de proteção que um dia usei agora parecia inútil diante da imensidão dos crimes que cometi sem sequer perceber. Não são apenas os insetos que sofrem, nem as plantas que secam — é a vida inteira, desmembrada aos poucos por uma humanidade que, em sua aflição de controle, acaba destruindo o próprio futuro.

E, assim, quando a última gota despencou do zênite, percebi que a verdadeira praga não era a que rastejava pelos campos. Era a que se escondia em nossas vísceras. Uma praga que, silenciosa, nos devora a todos, um borrifo letal por vez.

O dilúvio químico, enfim, encontrara sua morada.

Autor

  • Meu diploma diz que sou biólogo. Minha curiosidade sobre documentação me disse para procurar a graduação de Biblioteconomia. O futuro imaginado vislumbrou um biobliotecário. Enquanto o futuro não chega, você pode me encontrar na Biblioteca Central César Lattes da Unicamp (eu trabalho lá!) para conversar sobre o que você quiser, sou muito curioso (e às vezes não falo tanta bobagem).

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