A revolução será pop ou não será

É preciso honestidade para compreendermos e encararmos o período em que vivemos. O Brasil em 2020 é um verdadeiro laboratório da necropolítica. Não existe um plano de governo, para nenhum dos setores de direitos sociais básicos, vulgarmente chamados pelas redes sociais como “privilégios”, seja a saúde, a cultura, a educação, ou o meio ambiente etc. Nosso atual governo é o da eugenia: as ordens do chefe do Estado brasileiro são para que literalmente alguns corpos sejam marcados enquanto vidas vivíveis e outros corpos enquanto vidas descartáveis. Em meio a tudo isso, por conta do histórico projeto de desigualdade social brasileiro, toneladas de conceitos como capitalismo, socialismo, direita e esquerda, criam uma falsa ilusão de que estamos polarizados, quando, em realidade, as pessoas que disparam aos ventos esses termos nem sequer conseguiriam discorrer sobre eles com profundidade.

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Há algumas semanas, a maior estrela pop brasileira do momento, Anitta, percebeu que a era de influenciadores e artistas mudou radicalmente por conta da pandemia global. Distanciando-se de pautas como moda e lifestyle, tradicionalmente conteúdos associados a influenciadores digitais, Anitta compreendeu que mais do que nunca era preciso oferecer conteúdo de qualidade para seus seguidores. Desde então, ela tem feito lives com políticos institucionais de Brasília, ativistas e intelectuais públicos, como sua amiga, Gabriela Priolli, famosa por fazer parte do quadro “O Grande Debate”, da CNN, canal recém-inaugurado no Brasil, conhecido por produzir um jornalismo de tom questionável.

Antes criticada por conta de seu silêncio político em relação a pautas que interessam às feministas, pessoas negras e LGBTs, Anitta agora tem sido criticada por querer entender sobre política. A artista de Honório Gurgel estudou em uma escola pública durante a vida toda. Sua memória política tem a ver com as duas longas horas que passava num ônibus diariamente até a Tijuca, onde estudava. Quantas Anittas existem entre nós por aí?

Numa das lives, ela pontuou: “Estou começando a entender agora o que é direita e esquerda, o que são os partidos. Então, não estou aqui para promover ninguém. Quero que as pessoas, principalmente da minha geração, sintam interesse na política e a entendam de maneira fácil”.

Mas Anitta começa cada live nos ensinando: no início de cada chamada de vídeo pede em uma curiosa e informativa agonia que os seus convidados falem de maneira “simples”: seja com Gabriela Prioli (que agora é responsável por dar aulas públicas a ela sobre conceitos básicos de história e política), ou o deputado Felipe Carreras (que se viu forçado a retirar uma medida provisória que prejudicava a classe artística, depois que tentou tripudiar Anitta), ou mesmo com o deputado federal Alessandro Molon (com quem ela dialogou sobre a medida apelidada de MP da grilagem, que facilita a regularização fundiária no país e tem apoio da bancada ruralista). Depois desse tumulto, vários políticos bloquearam a artista nas redes sociais e também fecharam seus comentários para usuários em geral.

A agonia de Anitta nos informa sobre o distanciamento das militâncias formadas pela academia no Brasil e faz levantar diversas indagações: de quem estamos nos aproximando quando teorizamos? Quem estamos afastando quando, de alguma forma, optamos por utilizar campos de linguagem que são elitistas? Como traduzir esses conteúdos de maneira que eles não percam seu rigor? E mais do que isso, como engajar as pessoas para que elas compreendam que a política é uma atividade cotidiana, que deve ser feita por todos nós? Pode o entretenimento cruzar-se com a política, fazendo com que artistas dialoguem sobre teorias que parecem utópicas? Existe uma única forma correta para militar? Ou ainda, é possível hackear a academia?

Alguns intelectuais brasileiros já há algum tempo tem criado livros, artigos e manifestos de que o Brasil se tornaria um império plutocrático e fascista – uma distopia biopolítica, digna de um episódio de Black Mirror. Vemos bots de Bolsonaro, tweets de latinos se aliando às perspectivas nazistas, políticos institucionais falando sobre “ideologia de gênero”, ativistas sendo mortos ou exilados, e enquanto isso, corpos e mais corpos continuam a morrer, seja por conta da negligência do Estado que não consegue assumir sua responsabilidade sobre a pandemia global, seja pela homolestransfobia, racismo, machismo ou violência policial. Essas mortes são traduzidas em estatísticas – não se tornam biografias, produzindo o grotesco em nossas subjetividades, e criando uma hipernormalização de que a vida é isso mesmo – morrer, sem qualquer proteção, sem que as instituições intervenham para que tenhamos vidas vivíveis. Nesse sentido, qual é o papel dos acadêmicos? E qual é o papel dos artistas?

Não devemos subestimar a força dos artistas pop. São esses corpos tecnoperformativos que subjetivam as massas, que nos informam sobre onde estamos socialmente, e com sorte, podem também nos inspirar a criar realidades anteriormente não imagináveis. Como então produzir estratégias que nos aproximem das pessoas para que elas nos compreendam? Mais do que isso, talvez seja hora de disputar figuras como Anitta, Gabriela Priolli, Felipe Neto e demais influenciadores que se comunicam com milhares de pessoas diariamente. Nos tornamos infovíduos, diante de telas que dizem o tempo todo quem somos ou o que queremos ser. Pode a revolução ser twittada?

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