Sonia Sobral: “A Dança Pode Transformar a Finitude do Corpo em Infinitude”

Apresentação no Centro Cultural São Paulo | imagem: Paulo Henrique Baumann

Gestora cultural e pesquisadora em artes cênicas, Sonia Sobral assumiu neste fevereiro a curadoria de dança do Centro Cultural São Paulo (CCSP), equipamento sob a gestão da jornalista Erika Palomino. Sonia adentra um espaço que é, para a dança em São Paulo, “fundamental, inaugural” — ao longo da história desse local, a dança marca sua programação, sua produção de conhecimento e, notavelmente, o modo como o público se apropria das suas instalações — dançarinos de todos os estilos o visitam “como se o CCSP fosse a São Paulo desejada. Um lugar público onde podem se encontrar, conversar, estudar, dançar sem o perigo de serem violentados, agredidos, discriminados”.

À Úrsula, além de comentar os seus propósitos como curadora, Sonia fala da sua relação com a dança e da potência dessa área de expressão: “A dança não é uma linguagem difícil. A dança é um modo de ver e sentir as coisas, assim como o cinema, a literatura, a antropologia etc. — perspectivas de mundos”.

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Você disse que foi convidada a “reinaugurar” a área de dança. A palavra indica uma grande renovação. É disso que se trata? Como você encontra a área de dança do CCSP e o que pretende realizar?

Na verdade, pensei em reativação de um espaço de criação e trabalho no campo da dança. O CCSP esteve sem curadoria de dança na gestão passada. Senti uma grande alegria por parte de toda equipe com a volta dessa curadoria e isso foi muito estimulante pra mim. Esse retorno foi possível graças à sensibilidade da atual diretora, Erika Palomino. Sua primeira proposta para a Secretaria da Cultura foi a volta da dança ao CCSP e a implantação de duas novas áreas: a moda, que está a cargo da Karlla Girotto, e a perfomance, com Mauricio Ianês.

O CCSP, você também notou, tem uma história importante quanto à dança em São Paulo. Como você vê o papel que esse centro cultural cumpriu quanto a essa área de expressão?

Vejo como fundamental, inaugural mesmo. Comecei a fazer dança nos anos 1980 e o CCSP era a referência. Ainda hoje nos beneficiamos do que aconteceu lá, de meados dos anos 1980 até o início dos anos 2000, com o trabalho desenvolvido pelo Marcos Bragato.

Além da programação e das aulas, havia (e ainda há) o Arquivo Multimeios, que abriga um dos principais acervos de dança de São Paulo. Depois outros institutos começaram a trabalhar mais sistematicamente com dança, como o Itaú Cultural. Em 1999, fui convidada a implantar a área de dança nesse instituto.

Outra característica importante do CCSP é que esse é um equipamento muito apropriado pelo público. Os espaços são ocupados, reinventados — principalmente por grupos de dança. O que você acha que alimenta essa forte relação do local arquitetônico e essa arte do corpo?

É uma arquitetura de relação muito orgânica com a cidade. E é apropriado por ser aberto e contíguo à rua. Não tem porta! O passeio paralelo à Rua Vergueiro foi nomeado, já pelos arquitetos Eurico Lopes e Luis Telles, de rua interna. Veja o nível da organicidade (acabei de notar que essa palavra termina com cidade). Hoje, com a apropriação do público, é identificado pela equipe do CCSP como rua da dança.

Os pequenos públicos podem ser entendidos como uma multiplicidade de públicos heterogêneos, que somados são um grande público, uma sociedade. Portanto acho bacana ter trabalhos para grandes e pequenas audiências

É muito legal ver a liberdade e a multiplicidade dos frequentadores do CCSP. Eles não são necessariamente frequentadores das salas de espetáculo e das salas de exibição, são frequentadores do espaço público, como se o CCSP fosse a cidade de São Paulo desejada. Um lugar público onde podem se encontrar, conversar, estudar, dançar sem o perigo de serem violentados, agredidos, discriminados, barrados por seguranças etc.

No mesmo sentido: em uma formação de gestores culturais da Prefeitura de São Paulo, um funcionário comentou que não havia gestos de diálogo entre o CCSP e esses grupos de dança, que poderia trazê-los para perto. O que você pensa sobre isso?

Até o mês passado eu era apenas público do CCSP, por enquanto só posso responder essa pergunta desse ponto de vista. Intuo que o diálogo, silencioso talvez, aconteça simplesmente abrindo as portas e deixando-os entrar. Não é preciso trazê-los para perto, eles já estão perto. Talvez você queira dizer, fazer com eles ou trabalhar com eles, e essa também é uma questão minha, um desejo de fazer com eles. Mas pode ser que estar lá seja tudo o que eles queiram, um espaço ao mesmo tempo protegido e aberto pra treinar e ensaiar seus sambas, breaks, teatros, tangos etc. Simplesmente isso. É uma “auto-gestão coletiva” impressionante. Um acordo tácito incrível. A partir do fim do dia começam a chegar os dançarinos de hip hop, passistas ensaiam antes disso, na hora do almoço é outro rolê etc. É preciso ter muito cuidado e sensibilidade para mexer nisso, é como mexer no prédio.

O público de espetáculos de dança tende a ser pequeno? Boa parte das apresentações a que compareci no CCSP e em outros espaços eram feitas para uma dezena de pessoas ou mesmo. Concorda com essa interpretação? Há como transformar esse cenário ou a dança é um gênero “difícil” demais?

A dança não é uma linguagem difícil. Há muitas companhias como o Grupo Corpo, a Cia de Dança Deborah Cooker, Pina Bausch, o Grupo de Rua de Bruno Beltrão que têm públicos grandes. Uma obra dedicar-se a um pequeno ou a um grande público não a faz menos ou mais especial e não a faz menos ou mais difícil.

Outro dia conversava com um coreógrafo paulista que dizia não aguentar mais ler em matérias e críticas coisas como: o maior espetáculo de fulano, o melhor diretor etc. Ele dizia que queria fazer o pequeno espetáculo. Por causa disso, a primeira programação de dança que propus foi justamente uma pequena série, o pequeno espetáculo de fulane, o pequeno espetáculo de ciclane. Talvez esses criadores queiram esse tamanho para contrapor ao espetacular. Eles não estão tão interessados em movimentos velozes, grandes efeitos, deslocamentos vertiginosos. Não estão interessados numa lógica dominante, e isso é muito político!

Se há dificuldade para o público de dança contemporânea, está no fato de que hoje cada experiência tem que ser apreendida em si própria, ou seja, não se utilizam de modelos e vocabulários universais como o balé clássico ou a dança moderna. Estava combinado que a dança era um fluxo contínuo de movimento, agora não está mais combinado assim. Talvez o público sinta que a dança quebrou um vínculo com ele porque o tirou do conforto. O público de arte contemporânea, em qualquer área e lugar, é pequeno mesmo, é para os que querem pluralidade de mundos e de percepções. E os pequenos públicos podem ser entendidos como uma multiplicidade de públicos heterogêneos, que somados são um grande público, uma sociedade. Portanto acho bacana ter trabalhos para grandes e pequenas audiências.

Para fechar, conte um pouco da sua própria relação com a dança. O que é a dança para você, o que essa área de expressão tem de excepcional?

A dança para mim é um modo de ver e sentir as coisas, assim como são o cinema, a literatura, a antropologia etc. — perspectivas de mundos. A singularidade da dança está na relação ou correlação corpo-tempo-espaço em que instaura seu pensamento. Há idéias que só se organizam cinematograficamente, outras numa equação matemática, outras com cores. A dança constrói seu tempo-espaço no corpo ou com o corpo. O sujeito da frase é o corpo. A dança pode transformar a finitude do corpo em infinitude, se esse corpo for usado como um sistema aberto — e isso é incrível.

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Mais:

Assista à entrevista de Sonia Sobral sobre o Ballet Stagium, grupo que marcou a sua relação com a dança.

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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