Os “Movimentos Sociais” Já Mudaram. Resta Correr Atrás

No grupo da igreja do bairro no WhatsApp, dona Esmeralda manda duas fotos de garotos adolescentes pardos, de boné aba reta, camiseta larga e calca de tactel, tiradas em baixa resolução do que parecia ser uma câmera residencial. As fotos vêm com um texto junto:

“Esses moleques estão roubando celular aqui no bairro. eles são da favela depois do riozinho. A Isabel, mãe do Felipe, disse que viu eles correndo na rua dela e entrando no Bar do Loma.”

Dona Odete responde:

“Eu já ouvi falar que lá é boca de fumo.”

Seu Olegário confirma:

“É sim, eu já vi uns moleques estranhos fumando maconha lá.”

E a partir daí a notícia se espalha em outros grupo de família, do condomínio, da reunião da Tupperware, das amigas do bingo ou da igreja. Tudo ali sendo repassado como verdade, por mais que ninguém tenha visto os meninos assaltarem ninguém, mesmo que eles tenham entrado no Bar do Loma só para beber uma Coca. Dane-se: se encontrarem os dois na rua de novo ou o povo foge ou se reúne pra “dar uma lição” neles. Em algumas mensagens, os rapazes já foram investigados, denunciados, julgados e condenados à revelia.

Existe toda uma discussão sobre o que é um movimento social. Existem pessoas de extrema credibilidade que passam a vida toda estudando o conceito, as maneiras pelas quais os movimentos se desenvolvem, suas formas de abordagem, suas características em comum. E deve ser ao mesmo tempo excitante e horrível viver como um desses acadêmicos nesses tempos em que os grupos se dissolvem e se reinventam em formatos que lembram tudo, menos movimentos sociais.

Em 2008, um agitador político (no bom sentido) do bairro em que eu sempre morei se elegeu vereador. Ainda que eu discorde da grande maioria das posições políticas desse moço, era notório o esforço dele em produzir abaixo-assinados por mais segurança, em reclamar com a prefeitura pela iluminação precária de algumas ruas, pela grama que não era cortada e crescia pelas calçadas e vielas, pelos buracos nas vias. Com isso, conseguiu alguma notoriedade, especialmente entre os comerciantes e as donas de casas da região.

No entanto, o rapaz em questão era bem chucro, e também totalmente inábil em negociações políticas. Tentou continuar com a mesma postura de “agitar fazendo denúncias” que o levou à Câmara Municipal e viu todas as portas se fecharem, a ponto de quase não conseguir concorrer à reeleição. Sua pouca informação, aliada à falta de assessoria, também o complicou nas prestações de contas eleitorais. Não foi reeleito, e hoje perdeu toda a sua credibilidade junto à comunidade.

Os grupos de WhatsApp e redes similares se tornaram uma ferramenta de mobilização de pessoas comuns. Esses grupos fazem o papel da denunciar, e definem as pautas com base na mobilização gerada por cada denúncia

Na mesma eleição, em comerciante do bairro ao lado do nosso foi eleito vereador. Era um sujeito mais letrado, com boa fama, mas caiu em desgraça após fazer parte de uma administração catastrófica e também por questões pessoais: o sujeito se separou da esposa, começou uma boataria de que ele tinha um caso com sua secretária, eu pessoalmente nem fui atrás pra saber, mas foi o tipo de coisa que só serviu para fortalecer entre as donas de casa de classe média de onde eu moro o discurso “olha só como a política corrompe as pessoas, quem entra lá bem sai mal”.

Isso tudo ocorreu antes de 2013, mostrando que o discurso da antipolítica, que explodiu na sequência das jornadas de junho, já estava latente nas relações sociais. E é esse mesmo discurso que hoje forma movimentações próprias em grupos do WhatsApp: as pessoas avisam umas às outras quando encontram alguém suspeito porque têm a percepção de que a polícia não vai ajudar em nada. Afinal, se há uma consequência nesse discurso da antipolítica é que ele é profundamente anti-estatal, e as redes sociais, em alguma medida, contribuíram com isso, fornecendo um fluxo de informações mais consistentes, especialmente quando se constituem em um alerta: antes, você ouvia falar de um assalto a cada três meses porque a dona Gertrudes ouviu da prima dela que alguma amiga da reunião de oração ou do bingo que tinha tido um assalto na rua tal. Hoje, esse tipo de notícia chega todo dia, às vezes requentada, não só porque as pessoas querem alertar as outras, mas porque a facilidade na difusão de informação faz com que muito mais experiências sejam agregadas ao cotidiano e tidas como “dignas de serem contadas”.

Em Santo André, dois casos se notabilizaram recentemente: no primeiro deles, no final de julho, o prefeito fechou alguns postos de saúde sem qualquer aviso prévio. Foi uma coisa feia, bem desorganizada, teve bastante descaso mesmo. Há cinco ou dez anos esse tipo de notícia se espalharia sem tanta rapidez, de forma desencontrada, de acordo com as tentativas de utilização dos equipamentos. Hoje, com os grupos de WhatsApp, a coisa foi quase instantânea: no dia seguinte, já tinha gente protestando em frente à Prefeitura, o que não adiantou muita coisa, mas corroeu a popularidade do prefeito entre aqueles que precisam usar os serviços de saúde da cidade.

Entre dezembro e janeiro, porém, os protestos foram mais tensos. Porque o prefeito decidiu atualizar a planta de valores do IPTU da cidade de forma completamente tosca, e, bem, os carnês começaram a chegar nas residências. Começaram a chover mensagens nos grupos de WhatsApp “meu carnê de IPTU veio num valor absurdo” e isso rapidamente se tornou em uma série de protestos, que levaram o prefeito a rescindir o ajuste das plantas de valores do IPTU que havia anunciado anteriormente.

Vemos que os grupos de WhatsApp e redes similares se tornaram uma ferramenta de mobilização das pessoas comuns. Quando essas pessoas consideram que algum direito está sendo usurpado, saem do virtual e vão protestar pessoalmente. Esse processo de avaliação é quase um filtro natural de pautas, algo que costuma ser exaustivamente discutido em movimentos sociais convencionais. Esse filtro é o do senso comum: muito mais gente se identifica em protestar contra o aumento do IPTU do que contra o fechamento de postos de saúde porque isso vai de encontro a aquele discurso de negação da política e de descrença nas estruturas estatais. Então, se um posto de saúde fecha, o cidadão não vai gostar, mas no fundo vai se conformar sabendo que das estruturas estatais isso já era esperado. Só vem notícia ruim do setor público. Com o IPTU é diferente: a revolta vem do raciocínio “esse estado não faz nada de útil e ainda quer cobrar mais de mim?”. É uma afetação pessoal.

Isso também é obviamente utilizado por políticos convencionais tentando buzz, afinal a política ainda está muito na fase de tentar usar as redes sociais para conseguir alcance, especialmente no âmbito local. Foi o que aconteceu em Santo André, com vereadores de oposição, do PT, participando de protestos contra o reajuste do IPTU junto com a classe média alta da cidade. Não faz sentido nenhum, mas faz todo o sentido.

A impressão é de que tudo se tornou uma grande bagunça casuísta. Isso é parcialmente verdade, mas também é verdade que os movimentos políticos tradicionais não sabem lidar com a questão das redes sociais em sua plenitude, e não à toa pagam milhões de reais em “especialistas em rede”, que saibam fazer conteúdos que viralizem.

Qual é a solução para os movimentos sociais convencionais? Influenciar o senso comum. Só com informação de qualidade, com ações responsáveis e com sensibilidade para entender as necessidades do cidadão de classe média será possível reverter a percepção de que toda ação política é ruim

Hoje, os movimentos nascem na Internet para depois se instrumentalizarem em manifestações físicas. Por isso, é mais fácil para movimentos conservadores se fortalecerem, em um primeiro momento. Para promover um grupo conservador por meio da Internet, basta um empresário conservador disposto a colocar dinheiro em estrutura de produção de conteúdo e viralização, e empresário conservador é o que mais tem. E também há lugar para recrutar pessoas para esses movimentos, uma vez que, desde o Orkut, comunidades se formavam com base em afinidades de pensamento, e isso só se aprofundou com a migração do público para redes sociais como Twitter e Facebook.

O sujeito que tenta ser o agitador político local cada vez mais perde espaço, porque hoje esse tipo de serviço é prestado pela rede de grupos de WhatsApp formada naturalmente nos últimos anos. Esses grupos fazem o papel de denunciar, mas também definem as pautas prioritárias com base na mobilização gerada por cada denúncia. Como o pautador é o senso comum dos participantes desses grupos, fica fácil explicar, em nossa sociedade moralista que acaba com a carreira política de um sujeito com um boato de que ele saía com sua secretária, porque uma exposição em um museu ou um aumento de tarifa de IPTU às vezes gera mais repercussão do que o fechamento de postos de saúde ou de escolas públicas.

Qual é a solução para os movimentos sociais convencionais, então? Influenciar esse senso comum. É por isso que, apesar de tudo, movimentos como o MTST ainda gozam de certa popularidade (ainda que também tenham muita rejeição). Ainda tem muita gente que considera o direito à moradia algo fundamental. Tanto que o principal argumento contra esses movimentos nos grupos de WhatsApp atualmente é um pouco crível “esses caras foram contratados, não estão precisando de casa de verdade” — ainda que ocupações como a Povo Sem Medo, de São Bernardo do Campo, permaneçam firmes e com milhares de famílias acampadas há meses. Direitos básicos ainda são alvo de empatia. Pessoas sem ter onde morar, sem comida em casa ou sem os suprimentos básicos para cuidar de um bebê recém nascido ainda geram muita mobilização, porque são temas com os quais o cidadão de classe média se identifica.

Do lado conservador, a discussão sempre se dá em três campos: no campo moral, na questão da segurança pública e no fortalecimento da percepção de corrupção, que é fundamental para a consolidação do discurso “o estado está me roubando”. O campo moral é responsável por manifestações descontextualizadas, como a do Queermuseu. O campo da segurança pública sempre usa o medo como ferramenta para que o cidadão aceite entregar suas liberdades para um grupo autoritário e elitista. E o fortalecimento da percepção de corrupção é fundamental para que o discurso da antipolítica permeie toda a discussão, tornando inadmissível a percepção lógica de que não há nenhum problema em pagar mais impostos se esse pagamento de impostos se refletir de fato em benefícios para a sociedade.

> Veja também/Curadoria:

O Bicho Está Nu: a Polêmica La Bête no MAM“, por Duanne Ribeiro

Entender os princípios desse senso comum do cidadão de classe média é o essencial para entender a nova dinâmica dos movimentos sociais organizados em rede. E hoje em dia é impossível “viralizar” sem falar com essa classe média, que se pauta pelas informações que chegam pelos grupos de WhatsApp.

Para criar novos movimentos, orgânicos, que realmente façam diferença, é preciso incentivar o afloramento da melhor parte dessas pessoas de senso comum, mobilizando esforços em temas que são sensíveis a elas, passando informações verdadeiras e agindo com responsabilidade. Só com informação de qualidade, com ações responsáveis e com sensibilidade para entender as necessidades do cidadão de classe média será possível reverter a percepção corrente de que toda e qualquer ação política é ruim, transformando o círculo vicioso da descredibilidade das instituições em um círculo virtuoso de credibilidade, de esperança e da perspectiva de um futuro melhor para todos nós enquanto sociedade.

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publicado originalmente no Medium

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