Abel Gance: Essencial é seguir minha poesia

Aí está o segredo que eu penso que crítico nenhum percebeu… Um grande filme? O evangelho de amanhã

O diretor de cinema, poeta e dramaturgo Abel Gance nasceu em 25 de outubro de 1889, há 120 anos. Faleceu em 10 de novembro de 1981. É um dos grandes nomes da sétima arte; detalhista, inventivo, desenvolveu novas técnicas em seus filmes e também criou equipamentos. Em lembrança, trazemos trechos do livro Napoleão, de Nelly Kaplan, em que podemos ter vista dos conceitos que o diretor mantinha sobre o cinema, sobre a arte e sobre si mesmo; são discursos de entrega à arte e também de decepção com os resultados, de tentativa de atingir o público de maneira inesquecível e da amargura que causaram as pressões externas sobre seu trabalho. O título do livro faz alusão à grande obra de Gance: Napoleón (1927), da qual traz o roteiro, junto a entrevistas, anotações e confissões que o diretor fez em seus diários. Numa das notas, ele se dizia: “essencial. Seguir minha inclinação, minha natureza, minha própria poesia”.

Logo acima, ele também disse: “E, principalmente, zombar de tudo” — ao que o autor nos informa, uma das frases preferidas de Gance era: “tudo é trágico, nada é sério”. Napoléon teve muitas versões, sendo que a primeira rodava por nove horas. O próprio diretor voltou a ele inúmeras vezes, alterando, diminuindo, modificando — feito para o cinema silencioso, foi adaptado ao sonoro; e em diferentes países teve versões reduzidas. A inventividade de Gance não cabia nem mesmo na tela cinematográfica tradicional. Para realizar suas visões, desenvolveu um sistema de três telas — a Polyvision, criando uma impactante panorâmica. A história das gravações envolve dificuldades, atrasos, outras inovações tecnológicas e uma busca por um ideal de filme do qual teremos uma amostra daqui por adiante.

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De Napoléon, Nelly Kaplan

Todos os dias sou inundado por um mundo de gente que quer me ver filmar Napoleão. Geralmente entram sorrindo e tagarelando como se isto aqui fosse um music hall, mas saem de cara série e pensativos, até sonhadores, como se algum deus escondido tivesse acabado de abrir para eles os Portões Dourados. É que viram de perto como se obtêm os efeitos dramáticos, com mais dor e sofrimento do que somos levados a crer na vida diária. Lá, a realidade não se compara com a de um estúdio onde, com fé, se pode criar uma verdadeira catedral de luz!

Há duas espécies de música, a música do som e a música da luz, que nada mais é do que o próprio cinema; e é a música da luz que se eleva mais alto na escala das vibrações… Há ruído e há música. Há cinema e há a arte do cinema que ainda não criou o seu neologismo… Contudo, vários Cristóvãos Colombos da luz já surgiram… Tudo é ou se torna possível. Uma gota d’água, uma gota de estrela… O cinema se torna uma arte do alquimista a partir da qual podemos esperar a transmutação de todas as outras artes se pudermos pelo menos tocar-lhe o coração: o coração, o metrônomo do cinema… Nossa Arte requer uma lei severa, exigente, que rejeite o que é agradável ou original a qualquer preço, despreze o virtuosismo e a falsa transposição de imagens…

Outra coisa: a realidade não basta. Cervantes diz a Sancho Pança, por intermédio de Dom Quixote, estas palavras admiráveis: “Isto é a vida, infelizmene, meu amigo, com a única diferença de que não é igual aquela que vemos no teatro!” … Assim como o reflexo do fogo no cobre é mais belo do que o próprio fogo, ou a imagem de uma montanha mais bela num espelho, a imagem da vida mais encantadora na tela do que a própria vida… Não o teatro, não o romance, mas os filmes. Qual é a diferença? É esta. O cinema não se satisfaz com a evolução. Ele quer o sexto ato da tragédia de cinco atos e a continuação do romance psicológico… A imagem só existe como representação do poder de seu próprio criador… Ai está o segredo que eu penso que crítico nenhum percebeu… Um grande filme? O evangelho de amanhã. Uma ponte de sonhos lançada de uma época a outra, a Arte do alquimista, Obra prima para o olho. Chegou o tempo da Imagem!

Se eu quisesse. No momento tenho todas as possibilidades de um mágico em minha arte, a oportunidade de mudar os valores do povo. Isso significa que amanhã posso ser Shakespeare, Perrault ou Dante.

Por que então apenas sorrio e deixo cair flores inúteis de meus dedos? Estarei com medo do tremendo solavanco que meu despertar causará em minha natureza animal?

Quando você vê um filme terminado, você está ainda longe de ter realizado seu sonho. Há uma perda de carga elétrica, de voltagem… Esse negócio de cinema, difícil como já é, passa por tantas mãos, por tantas formas de censura, por tanta gente que tem hábitos diferentes dos seus (gente que, em geral, é minimamente artística), que você nunca encontra mais de 20 a 25 por cento, no máximo, das ideias iniciais que pôs no papel em momentos de frenesi ou inspiração… É uma pena, porque eu imagino que com, digamos, uma perda de 10 a 15 por cento, se pudéssemos fazer filmes como gostaríamos, eles seriam tão fascinantes que os espectadores não saberiam como despregar-se de suas cadeiras, gritariam de alegria, terror, entusiasmo.

Contudo, embora não se possa aplicar a matemática a esse tipo de cálculo, imagino que não alcancei 5 por cento daquilo que sou capaz. Quem me dera que os produtores tivessem entendido o que eu podia ter levado para o cinema ou tivessem tido a mais leve suspeita dos obstáculos irracionais que eram postos no meu caminho somente porque eu me recusava a me imobilizar no status quo.

Desejo que o cinema de amanhã seja a verdadeira imagem para que foi inventado, uma escola de exuberância, energia, grandeza, poder, da metamorfose do homem mais além de si mesmo. Há momentos em que vejo a minha vida como uma estante imensa cheia de sonhos perdidos. E no entanto sempre consigo reagir, pois sei que devemos viver nossas fantasias delirantes, viver perpetuamente naquela exaltação intelectual que é a única coisa que pode com um sacudidela nos arrancar daquela lenta, tão lenta, rotina biológica de mesquinha evolução. Temos de saltar sempre para a frente, atravessando aros em chamas, com nossas próprias possibilidades, nunca parando ao ouvir o confuso escárnio dos espectadores. Por mais sublime que seja o teatro ou o cinema que façamos, haverá sempre alguém para ouvir, ver, mesmo que seja só aquela parte de nós mesmos que deixamos para trás no caminho.

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