Teatro Cibernético: “R.U.R., O Nascimento do Robô”

Na medida em que a emoção humana é também cálculo, como se pode dizer que são artificiais as emoções robóticas?

R.U.R., O Nascimento do Robô, peça criada pelo português Leonel Moura, intriga o espectador de imediato, antes do início das cenas, pela sua boa premissa: é um espetáculo em que robôs e humanos contracenam juntos. Os robôs, como alegado pelos produtores, tem grau de autonomia alto e interpretam a si mesmos. A peça, que teve sua primeira temporada neste agosto de 2010, em São Paulo, é uma adaptação de um texto de 1920, escrito por Karel Capek e de nome similar: R.U.R. (Rossum’s Universal Robots). O original é um clássico da ficção científica e é notável por ter sido a obra em que se criou a palavra “robô”, depois popularizada.

Leonel Moura é artista multimídia e seu trabalho com frequência problematiza as emoções e as capacidades humanas, reproduzindo-as artificialmente, roboticamente. Em Robotarium, robôs se relacionam por sensores com a presença humana e tem personalidades distintas. Com RAP (Robotic Action Painter), ele confunde as fronteiras da arte com um robô que desenha sozinho e com total autonomia. Moura tem livros escritos sobre o impacto da tecnologia da vida moderna e a arte que nasce no século 21, e pretende lançar um livro de poemas escrito por um robô.

Sua adaptação de R.U.R., no entanto, tem menos qualidades do que problemas. A história da peça é típica: humanos criam os robôs, tentam usá-los como simples servos, os robôs se revoltam e subjugam a humanidade. Distante da época do original, essa curta descrição remete a muitas referências: Matrix e O Exterminador do Futuro, por exemplo. Apesar das muitas mudanças e da inserção de elementos atuais na peça, não há dialógo com essas outras produções, o que gera um defeito: se o colocarmos em perspectiva, comparando-o com as tantas obras do gênero, a peça de Moura se põe como uma versão pouco trabalhada do tema. A crueldade dos humanos com os robôs foi já bem contada em Animatrix, por exemplo, e Isaac Asimov explorou, em Eu Robô, consequências muito menos extremistas da inserção dos robôs no convívio humano: como seria a entrada deles na política? E se houvesse um supercomputador gerindo todo o mundo, sem controle maníaco? R.U.R. ignora essas discussões e trata de tudo como se pela primeira vez.

A ação ocorre em um cenário que consiste no palco e um telão de fundo, em que se projetam vídeos. O palco é um amplo espaço vazio, cuja atmosfera psicológica é dada pela variação de cor da luz refletida nele. O efeito plástico é interessante, principalmente na cena em que os robôs de corpo luminoso têm a sua cor variada de acordo com a iluminação ambiente. Outro bom recurso é o diálogo que o encenado tem com as projeções. Por exemplo: o espetáculo começa com um vídeo de chuva e raios (o que, em uma peça com tal nome, pode remeter ao Frankenstein); segue-se a isso a entrada dos personagens, molhados de fato, espremendo a água das roupas.

Mais do que um truque, ou precisamente porque é um truque, podemos pensar na alusão ao artificial das emoções robóticas. O som e imagem da chuva são falsos, mas nos passam a sensação. A água das roupas no palco é falsa e a sequência de fatos é forjada, mas consegue nos iludir em algum nível, nessa negociação de sentido necessária para nos sermos entretidos. Porém, é tudo sucessivamente cálculo e planejamento. Se pensarmos em obras com mais força melodramática (por exemplo, um filme como O Estranho Caso de Benjamin Button), se verá mais claramente que o engenho de um roteirista e/ou de um ator pode fazer rir ou chorar independente do artista ou roteirista se sentir dessa forma ou dos sentimentos derivarem de relações humanas reais. Isso porque nossas emoções são causadas por coisas que podem ser simuladas e se expressam por gestos geralmente semelhantes. O que é que de fato se pode exigir de um robô quando se quer que tenha emoções reais?

Nesse cenário, atuam seis personagens — três humanos e três robôs. Os personagens são estereótipos puros. Um deles é o cientista entusiasmado, preocupado só em criar, em realizar o que sonhou. Outro é o cientista diligente, sempre ocupado, com os olhos na vida prática. A mulher é uma artista, veste-se de forma extravagante (de forma evidente se explora a beleza do corpo da atriz) e não dá qualquer valor progressos dos dois cientistas, preferindo o “humano”, os “sentimentos”, o “amor”. Os personagens não fogem desses estereótipos mesmo quando seria razoável que o fizessem. Por exemplo: a artista repudia a construção de robôs, demonstra até certo asco em relação ao protótipo construído. Ela se casa com um dos cientistas, passam-se dez anos, ela se afeiçoa por aquele protótipo, que se torna sua maior companhia, e — mesmo assim — quando surgem novos robôs, ela tem a mesma reação de asco e repúdio.

Outro limite dos personagens é que suas ações quase sempre são só funcionais, isto é, servem só para fazer andar a peça, e isso é tão flagrante que talvez prejudique a fruição. Nos momentos em que o roteiro se lança a uma tentativa aparentemente humorística, referencial ou dramática, os resultados não satisfazem. Talvez fosse a intenção do artista causar risos e algum choque com a cena em que a mulher revela, de súbito, que pinta vaginas. A cena é quem sabe rápida demais, ou os comentários depois afogam a piada, mas a tirada não surge com força. Em certo momento, quando um personagem, sobre essas obras, diz algo como: ‘é errado’, ela responde: “o quê, a origem do mundo?” — que é uma referência à determinada pintura com esse nome e que consiste em uma vagina também. A citação pode passar batida e, mesmo se funcionasse, o que é que traria à peça? Outro problema dos estereótipos é os preconceitos que carregam, particularmente perniciosos no caso da mulher. Emotiva, taxada de ignorante e cujo descontrole amaldiçoa a humanidade (ela destrói o arquivo que salvaria a todos), basta que o cientista a puxe, a controle e beije para, no ato seguinte, estarem casados.

Essa estreiteza no trato do roteiro se estende para a própria concepção da peça e suas relações tanto com o original quanto com a contemporaneidade. Nas investidas que faz para trazer temas atuais, o espetáculo alude a Hitler e Albert Einstein (como opostos no âmbito das realizações da humanidade), a touradas e guerras e a meninas em praia e pirâmides (também como dois lados do viver humano). Quanto ao próprio tema, no entanto, a peça se mantém primitiva. Se na época de Capek o termo “robô” nem existia, hoje esse tipo de máquina está presente se forma natural. Nesta matéria, o leitor tem um panorama situação atual da robótica, nessa descobre sobre robôs que detectam sons e interagem, e nessa outra descobre que andróides que aprendem a ter sentimentos já são um desenvolvimento real. A peça propõe tudo em ficção, como se tudo fosse ainda novidade, mas talvez fosse mais rica se partisse do que nós já temos, do nosso mundo já mecanizado. Uma proximidade com o atual excluíria certas partes incoerentes, como o sistema que lidera os robôs ter de perguntar quem é Homero, em vez de checar em um banco de dados. Ou os robôs dependerem dos humanos para criarem uma fórmula, sendo que supercomputadores podem testar mais variáveis em minutos do que dezenas de humanos em uma vida.

O texto original inclusive permitia uma adaptação muito mais contundente. Capek fala de “robôs”, mas ele se refere a “homens artificiais”, não necessariamente máquinas. Está mais próximo da clonagem e da criação de vida de um Craig Veinter do que da arquitetura robótica. Edgar Franco, no texto “Seres Híbridos e Clones“, apresenta um panorama da interpretação artística do tema. O artigo faz parte de uma reportagem extensa da Com Ciência, “Clonagem – A Dessacralização da Vida”. Lendo os textos, vê-se que a discussão dentro da peça poderia ter ido muito mais fundo, e a sensação que fica é que o espetáculo se deixa limitar por um único atrativo. São os robôs supostamente atuando que chamam público e encantam a mídia. A peça, avaliados seus atos e suas possibilidades, pode ser reduzida a isso, à curiosidade, e esse é seu maior problema.

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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