Literatura Amordaçada

Escrever sob a determinação da crítica extraliterária (por exemplo, política), raras vezes, senão nunca, gera grande literatura

Quando foi expulso da antiga URSS em 1974 e conduzido de avião à então Alemanha Ocidental sob escolta, o escritor russo Alexandre Soljenítsin (1918-) já provocara muitas dores de cabeça às autoridades soviéticas. Escrevera e conseguira publicar em sua terra um romance ambientado nos campos de trabalhos forçados stalinistas, Um dia na vida de Ivan Denissovitch (1962). Apesar de parcialmente suavizado, o romance “passara” (expressão usual naqueles tempos de censura). Ainda assim, o que conseguira “passar” gerou desconfiança e má vontade não somente entre as autoridades do país, mas também entre a intelligentsia infelizmente então composta, em grande parte, de artistas e pensadores comprometidos com o regime.

A expulsão do escritor era o final de vinte anos de luta intelectual – combate ininterrupto para escrever e publicar suas obras no país.

Em O Carvalho e o Bezerro – escrito entre 1967 e 1974, com adendos e anexos no grosso volume (664 páginas), Soljenítsin nos conta sua epopéia. Aqui não se trata da prisão física, como o que ele denunciara com detalhes no gigantesco Arquipélago Gulag, mas do amordaçamento intelectual: cada texto, cada poema, cada romance e afinal, “arquivado” pelo redator-chefe da revista Novy Mir, apresentado para publicação precisava ser lido, examinado, dissecado – Alexandre Tvardovsky (figura fascinante, ora estritamente dentro do regime, ora rebelando-se), admirador apaixonado da obra de Soljenítsin, porém incapaz de romper completamente com o sistema. O escritor assistiu várias obras suas serem guardadas no cofre da redação de Novy Mir; a maioria permaneceu inédita no país durante esses anos; algumas tiveram sua estréia em livro fora da URSS, ou então em edições clandestinas (samizdat).

Durante cerca de 20 anos – de 1962, ano da edição de Ivan Denissovitch, até 1974, após Arquipélago Gulag ser apreendido pela polícia soviética e o escritor, expulso — Soljenítsin escreveu e batalhou por liberdade, enquanto sua casa era alvo de ‘batidas policiais” atrás de material comprometedor; enquanto enfrentava campanhas na imprensa soviética, cumulando-o de calúnias; vivia a longa novela do recebimento do prêmio Nobel – e muito mais.

Fornecendo nomes dos heróis e das vítimas – Anna Akhmatova, Bulgakov, Varlam Chalamov, Lev Kopeliev, Mandelstam, Valeri Tarsis, Lydia Tchukovskaia e tantos mais – e dos carrascos e “lambe-botas” – Beria, Cholokhov, Fedine, Kojevnikov, Voronkov e até mesmo Gorki (que encabeçou a lista dos 36 escritores soviéticos que enalteceram o trabalho forçado), o escritor pinta um painel assustador e asfixiante. O Carvalho e o Bezerro, cujo subtítulo é “esboços da vida literária” dá-nos uma amostra do “clima” intelectual da antiga URSS no início da era Khruchtchev atravessando boa parte da era Brejnev. Ficamos conhecendo um pouco de seu sistema de trabalho (a preferência, por exemplo, pelo “romance polifônico”, usado também por seu ilustre antecessor, Dostoiévski ), suas dúvidas quanto a atitudes públicas, as alternâncias de esconderijos para seus livros ainda inéditos na imprensa “oficial” , alguns já prontos e outros em progresso – Pavilhão de Cancerosos, O Primeiro Círculo, e o próprio O Carvalho e o Bezerro – o contato com mentes mais abertas e críticas ao sistema, como o cientista Sakharov e o matemático Chafarevitch.

Como um todo, O Carvalho e o Bezerro se ressente das repetições e dos sobressaltos vividos pelo escritor; há passagens empolgantes, mas a freqüência de sustos, de repreensões e ameaças sofridas acaba por tornar a leitura menos prazerosa. Os motivos desse desnível podem estar no fato de que era comum Soljenítsin não ter o manuscrito de um livro completo próximo a si (ficavam escondidos, aos pedaços); ou na ausência de um público leitor com sensibilidade literária (quando dispunha de leitores, eram escolhidos por serem politicamente confiáveis, não por sua capacidade crítica). Ou por ambas as razões. Também faria objeções ao estilo desequilibrado, marcado ora pela grandiloqüência, ora por uma ironia sutil; ênfases estilísticas têm o seu momento – que jamais deve ser abusado.

O próprio Soljenítsin estava bem consciente desses senões; logo no começo do livro, ao falar do “escritor subterrâneo”, isto é, aquele que escreve escondido, considera as desvantagens do enclausuramento em que os dissidentes viviam:

“… O escritor subterrâneo vê-se despojado de uma crítica artística severa, inteirada nos cânones literários da época. Ora, está provado que a crítica, a sóbria localização topográfica de um escrito no espaço estético, é muito necessária, é indispensável a todo escritor (…) ” (p. 17)

Eu complementaria: não só ser lido por leitores experientes, mas ainda que o escritor subterrâneo pudesse ler os grandes escritores, lê-los, relê-los, e assim enriquecer a si mesmo. Mas o que liam os escritores iniciantes, nas décadas de 1950 e ’60, na URSS? Apenas o que era aprovado. E, admitamos, escrever amordaçado raras vezes, senão nunca, gera grande literatura. A crítica extraliterária (aqui, política) sempre fará reservas à obra de arte.

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