Economia dos bastidores: algumas palavras sobre o ofício de produção cultural

A figurinista e produtora Anna Theresa Kühl escreve a respeito de ser uma operária da cultura

“Viver de teatro ficou mais plausível”, disse uma colega quando sua companhia ganhou um edital. Fiz uma produção local para aquele projeto e recebi uma quantia ínfima, algo que era igual para toda a equipe (grupo que, naquela época, enxergava a possibilidade de se manter com tal ocupação). Era o ano de 2011. Mais de dez anos se passaram e, durante todo esse tempo, não apenas cultivei essa ideia, como vivi assim: executando funções de produção cultural e figurino. Vivo até hoje dessa maneira.

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A produção, talvez, seja a função mais procurada no campo cultural, área em que tantos vislumbram a hipótese de fazer renda. Não por acaso, artistas costumam acumular diversas funções artísticas relacionadas à produção cultural (muitas vezes, um modo de viabilizar projetos autorais). Luiz Bolognesi, diretor de A última floresta (2021)1 , afirmou ao longo da divulgação do filme: “A indústria do cinema é maior que a do turismo”. Veja: muito se produz por aqui.

Mala | foto: Anna Theresa Kühl
Mala | foto: Anna Theresa Kühl

É certo que existem artistas que vivem exclusivamente de uma ocupação só. E, claro, existe a figura do empresário ou agente em iniciativas maiores e mais rentáveis. Por isso, faz-se necessário delimitar o nosso cenário: o interior paulista no ano de 2023 – região onde há renda, mas também precariedade e uma atividade mambembe. Atividade essa que rende frutos lindos. Ah, se rende. Embora esse seja um nó difícil de desatar, já que, com pouco dinheiro, dá para fazer coisas lindíssimas. Então, para que mais verba? Para que as coisas sejam ainda mais lindas e possíveis.

Mais um recorte para que se entenda de qual bastidor trata este texto: a esfera do figurino, a minha principal atuação, ofício que se nutre dos saberes da produção cultural. Não há a área de figurino sem a produção.

No contexto aqui debatido, vale destacar um conhecimento relevante: entender o funcionamento de editais e leis de incentivo. O que é o objeto (aquilo que faz o projeto existir)? Quem é o proponente (representante jurídico da ideia que não necessariamente é o autor)? De onde vem o dinheiro e de que modos ele se distribui? Como e para quem vai cada quantia? Deve-se ter ciência de editais e leis (a famosa Lei Rouanet; no caso de São Paulo, o ProAc ICMS; os fundos municipais de cultura). Além disso, pontua-se ainda que esses recursos não são “fáceis” ou “um dinheiro solto”. São prêmios distribuídos por meio de concursos, publicados no Diário Oficial e contam com pareceristas e contrapartidas.

Figurino | foto: Anna Theresa Kühl
Figurino | foto: Anna Theresa Kühl

Uma cena frequente, atrás da coxia ou das câmeras, corresponde à confusão entre a verba que está nas planilhas (o recurso disponível) e como ela é distribuída, alocada no rateio final. Quando se fecha um trabalho em que o autor não é o proponente, a coisa fica ainda mais confusa. Há o valor que se recebe pelo trabalho (o salário em uma conjuntura assalariada) – o chamado cachê – e o que se usa para serviços e materiais (tecidos e aviamentos, por exemplo). Se tudo isso parece óbvio para você, perceba que, em várias situações, é preciso explicar tais questões.

Essa roda viva não para de girar, um efeito cascata. O operário da cultura (termo de autoria desconhecida, mas que vem a calhar), a pessoa que trabalha e brilha nos bastidores, gasta com equipamentos, objetos, transporte e alimentação, movimentando toda a órbita. Uma órbita que inclui ainda a audiência do evento artístico (que gasta com comida, bebida e segue mexendo na economia).

Embora haja uma troca simbólica com o público, o trabalho dos bastidores costuma ser um pouco solitário, execuções individuais ou de coletivos pequenos (uma produtora em frente a uma planilha de prestações de contas), e, ao mesmo tempo, sustentado pela esperança de reconstruir estruturas perdidas nos últimos tempos.

Autor

  • Mestra e doutoranda em Artes Cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Figurinista, pesquisadora, professora e produtora cultural, Anna estuda as relações entre memória e traje de cena. Atua na em Campinas (SP) com figurino, produção e projetos como o "Memórias Vestidas – (Re)criação de Indumentária" e cursos independentes. É uma das responsáveis pelo roteiro e pela apresentação do Pano pra Manga, podcast sobre figurino.

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