Crítica Quinta Série

A polêmica, comum na internet, transforma debates públicos em situações de propaganda de posições e rebaixa a capacidade crítica

“O termo ‘crítica’ é polissêmico: tendências distintas poderão assumir essa tarefa de muitas formas. A mais baixa delas é a denegação e humilhação pessoal” | imagem: Elton Harding

O filósofo francês Michel Foucault muitas vezes se posicionou contra a emergência de polêmicas na vida pública. Ele diferenciava a polêmica do debate: neste, interlocutores são conduzidos a explicitar e desenvolver diante de seus oponentes as posições que defendem. Não é o caso nas polêmicas: elas são guiadas pela expectativa de rebaixar a autoridade simbólica daqueles que se colocam em posição adversa. Debates são diálogos críticos com possível ganho epistêmico; polêmicas são guerrinhas epistemicamente pouco relevantes e que servem acima de tudo para fortalecer posições de autoridade por meio da desqualificação de oponentes.

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Foucault emitiu essa posição nos anos setenta, quando o acesso a meios de comunicação pública era bem restrito em termos sociais. Mas ela me parece ainda mais relevante hoje, dada a internet e a multiplicação de emissores no espaço público nas últimas décadas. A guerra entre Rússia e Ucrânia oferece um bom exemplo do que vem acontecendo. A esmagadora maioria de posts que vejo sobre o tema seguem a orientação polêmica. Ou são antiputinistas e desqualificam aqueles que caem no canto de sereia da propaganda russa, ou são antiotanistas e desqualificam o que veem como adesão cega ao imperialismo norteamericano. Como o objetivo é basicamente desqualificar o outro lado, a tentativa de desdobrar e melhorar a própria posição é restringida: porque devo melhorar minha posição diante de um antagonista que está errado em princípio?

Podemos ver que a polêmica transforma debates públicos em situações de propaganda de posições, ideologias e também dos interlocutores nela envolvidos. Aquele que souber usar melhor recursos erísticos destinados a humilhar seus opositores será o vitorioso em termos propagandísticos, numa esfera pública degradada na qual o sucesso pessoal do expositor em atingir seus opositores é tomado como indicativo de seu mérito.

O pressuposto deste cenário é aquilo que os dois lados assumem implicitamente em comum ao polemizar: que a forma própria de interação discursiva entre posições contraditórias é a denegação pura e simples entre elas, e que uma atitude crítica é validada apenas por sua combatividade. Além de dogmatizar seus participantes a polêmica rebaixa suas expectativas em termos de atitude crítica. A desqualificação alheia é a adesão a uma atitude crítica de baixíssimo nível: a crítica modo quinta série.

Os sentidos da crítica

É de se esperar que um meio de discussão pública degradado à condição de pátio de colégio na hora do intervalo acarrete uma percepção generalizada de que opositores são estúpidos. Afinal, eles nunca se dispõem a esmiuçar as próprias convicções diante de seus adversários. Mas se trata menos de estupidez do que de debates conduzidos num contexto em que os interlocutores se recusam a oferecer esclarecimento uns aos outros. Aqueles que participam reiteradamente de polêmicas nesse contexto serão conduzidos à imagem de que as redes sociais são um ambiente midiático indutor de estupidificação acrítica. Dentro dos termos da descrição efetuada neste texto a imagem tem alguma validade, mas se deve reparar que ela desloca para os indivíduos o que é problemático de um ponto de vista estrutural.

E ademais temos muitos motivos para duvidar da tese “idiocrática” segundo a qual as redes sociais ampliaram o número de indivíduos estúpidos – que me desculpe Umberto Eco. Apenas as atuais taxas de alfabetização, escolarização, acesso a publicações, dentre outras, deveriam nos colocar em guarda contra essa suposição. A afirmação de que redes sociais restringem as capacidades críticas de seus participantes deve ser filtrada em chave similar. Muitas expressões nesses meios podem ser enquadradas como formas de crítica; mais do que isso, o pressuposto segundo o qual uma postura crítica deve estar presente em toda forma de discussão se encontra muito generalizado em nosso tempo, para além da diversidade de concepções acerca do que é uma atitude crítica.

O termo “crítica” é polissêmico: tendências culturais e ideológicas distintas poderão assumir essa tarefa de muitas formas. A mais baixa delas é a denegação e humilhação pessoal daqueles que contradizem as convicções defendidas – nela o que se considera acima de tudo é a propagação da convicção e não a sua qualificação por meio do exame, e a desqualificação do outro ao invés da tentativa de compreender melhor sua posição. No fundo: a troca de monólogos ao invés do diálogo construtivo que, segundo Platão, é a principal forma de instrução de nossa mente para o uso da razão enquanto capacidade mediadora nos assuntos humanos.

Autor

  • Professor de Filosofia na Pontíficia Universidade Católica (PUC) de Minas Gerais e co-autor do livro Filosofia como Esclarecimento.

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