Amor, Michael Haneke: dos limites do amor humano

Em sua primeira epístola aos Coríntios, o apóstolo Paulo constrói uma elegia do amor que talvez tenha servido, direta ou indiretamente, como molde para grande parte daquilo que a sociedade ocidental entende e espera do amor não erótico – do amor tido como verdadeiro, que ultrapassa as intensidades fugazes da paixão. Como um texto bíblico, colado, portanto, ao dualismo que classifica e nomeia as coisas em ‘bom’ e ‘mau’, a carta do apóstolo convertido peca por não mostrar os lados rudes, quietos, controversos e inesperados que circundam e coabitam o universo de coisas boas na qual reside o que se convencionou chamar de amor.

Em certo ponto de sua reflexão, Paulo afirma que “o amor tudo suporta”, e parece ser esta afirmação uma das forças impulsionadoras do mais recente filme do diretor Michael Haneke, o impressionante Amor (Amour, França/Alemanha/Áustria. 2012). Focando o cotidiano de dois idosos parisienses, Haneke constrói em seu filme um cenário menos divino que humano, menos idealizado que realista, no qual um amor cotidiano, com todas suas facetas, irá atuar.

Emmanuele Riva e Jean-Louis Trintignant interpretam, respectivamente, Anne e Georges, um casal de ex-professores de música que compartilha sua velhice em um confortável apartamento de Paris. Nos primeiros minutos do filme, as atividades do cotidiano de ambos são acompanhadas com certo distanciamento pela câmera de Haneke, que, a partir de uma abordagem direta, não demora a desvelar para seu espectador o cenário no qual transcorrerá todo o restante do filme: Anne sofre um derrame e volta do hospital com o lado direito do corpo paralisado. Seu pedido é apenas um: que o marido não a deixe voltar para o hospital, independente do que ocorra.

A partir de então, através de uma filmagem econômica, seca e direta, Amor narrará todo o processo de desenvolvimento da doença de Anne e as conseqüências disso em Georges e em Eva, a filha do casal, interpretada por Isabelle Hupert. Utilizando minimamente recursos que vão além da imagem-movimento em si, como seria o caso do texto ou da trilha sonora, Michael Haneke explora o processo de degradação da saúde de sua personagem a partir de um foco narrativo impiedoso. Todo o transcorrer do filme após a doença de Anna se passa dentro do apartamento do casal, sem nenhuma cena externa. O diretor não concede ao espectador qualquer rota de fuga daquele cenário cada vez mais triste e angustiante. A câmera oscila entre o close no semblante dos personagens e os planos gerais, fixamente enquadrados e demorados, nos quais não há outra alternativa senão contemplar cada elemento componente do cenário no qual se encontra o casal. Não há alívio para o espectador de Amor, pois não há alívio para os personagens do filme, o que faz com que toda a narrativa seja permeada por uma noção de angústia destituída de expectativa. Georges e Anna sabem que não há o que possa ser feito, que resta apenas esperar o tempo passar – razão essa do desentendimento do pai com a filha, que traz uma ponta de histeria ao enredo, brevemente dissolvida – e, a partir disso, dá-se o ritmo longo e arrastado do filme, como se não só os personagens, mas também o espectador, angustiassem pela passagem dos dias.

O limite entre a angústia e a fuga é representado pela presença das janelas do apartamento do casal. É a elas que os personagens recorrem, tanto mãe quanto pai e filha, na tentativa de espairecer, contemplar, fugir da realidade que se instala dentro do apartamento. A separação física que a janela oferece entre o lado de dentro e o lado de fora funciona como metáfora a respeito da vida que se vive e da possibilidade de se viver uma outra vida. Tal possibilidade de rompimento, porém, parece não se concretizar nunca, e é por isso que Georges vive a fechar as janelas de seu apartamento, mesmo quando uma pomba insiste em entrar por elas, como o sopro de uma realidade alheia àquele micro-universo que se concretizou dentro da residência do casal. Diante da insistência de uma vida distinta Georges não sabe como agir. Afugentar ou tomar para si essa outra realidade? 

Amor talvez seja um filme não sobre as virtudes de tal sentimento, mas sobre sua atuação em tempos adversos. A promessa de se amar mutuamente é o que serve de alicerce para a promessa futura que o filme de Haneke apresenta: o pacto da companhia, à revelia do que possa acontecer. O amor de Georges por Anna por muitas vezes é impaciente, é irritadiço, é falho, é surpreendente. Porque Amor não é uma elegia do amor, como a Carta de Paulo aos Coríntios; é um filme sobre os limites do amor humano.

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