Carmen: a “exótica” história de uma mulher que tinha vontades

imagem: Montagem de Carmen por Andrea Balducci, em 2014 (mais fotos)

Uma das personagens mais intrigantes das óperas de todos os tempos é Carmen, da ópera homônima de 1875, de Georges Bizet, com libreto de Ludovic Halévy e Henri Meilhac, trabalho baseado no romance de Prosper Mérimée. Sem dúvida nenhuma, grande parte da fama da moça se deve à linguagem universal da música, que é muito boa. Melodias fáceis de memorizar e orquestrações grandiloquentes compõem essa que é uma das melhores peças musicais de toda a humanidade.

O que dizer da famosa Habanera ou do Toreador? São árias que marcaram a humanidade nos últimos 140 anos, e posso pensar em muitas razões para isso, a começar pela música, e a continuar por aquela que me traz aqui, o que o texto fala, o que é, essencialmente, a personagem. Acredito que uns 75% da fama da ópera seja pelo conteúdo multisemiótico dela (isso é, pela relação como texto, música e montagem se constrói). Os outros 25, acho que vêm das adaptações.

As adaptações, que fazem a gente conhecer um derivado, e querer ir ao original. Como aquela que foi a minha “porta de entrada” para essa ópera: Carmen Get It!, um episódio de Tom e Jerry que amo quase tanto quanto à ópera em si.

Mas é sério, foram muitas adaptações, como o filme musical Carmen Jones, de 1953, com Dorothy Dandridge e Harry Belafonte nos papeis centrais, e Carmen: a Hip Hopera, com Beyonce e Meki Phifer, como protagonistas. No balé, temos uma filmagem de Carlos Saura, e, segundo, pelas informações que Samuel Titan Jr. apresenta no ensaio complementar da Carmen de Mérimée que ele traduz (Editora 34, 2015), até em certo idioma tradicional do Senegal ela foi adaptada, em 2001.

Até dentro da própria música, Carmen vira musa, seja numa antiga Flor de Madrid, de Angela Maria, seja numa moderna Carmen, de Lana Del Rey, a ópera e nossa menina seguem firmes e fortes, 144 anos depois!

E por que a fama? Vejamos olhando para ela, a sua a minha, a nossa e a de ninguém: Carmencita, a personagem.

Carmen, a exótica

A primeira coisa que nós devemos pensar quando a gente vai falar das Carmens é: quem está falando sobre a personagem, quem está trazendo pra nós o texto da Carmencita, quem está escrevendo a história e criando o narrador são homens. Homens brancos, do hemisfério norte, de cultura tradicional e elitista. Não quero pensar muito nas adaptações, porque elas surgem quando a ópera já virou sucesso, quero pensar no romance/ópera.

E por que é importante pensar no autor-narrador? Eu coloco isso porque sou bakhtiniano, em alguma escala, e lá na Estética da criação verbal nosso amigo coloca que, entre outras coisas, quando alguém narra, o que narra é sempre uma seleção, mesmo quando esse narrador é “onipresente”; e, toda a personagem tem dois lados, um lado que ela percebe sobre si mesma e um que ela não percebe, mas, os outros, sim (e vice-e-versa).

Ou seja, quando a gente vê Carmen, estamos vendo a leitura de alguém sobre ela. Estamos lendo aquilo que alguém falou sobre ela. Não é ela dizendo a que veio, suas opiniões etc.; é uma construção de homens brancos, franceses e católicos, ou seja, gente com a cabeça cheia de ideias sobre pecado e sexo.

E um jeito de você vivenciar isso sem toda a questão moral é fazendo o quê? Escrevendo sobre. E foi isso que eles fizeram. Pegaram todas a suas coisas de pecado e moral, e colocaram em uma personagem. Uma personagem que fizeram, e que desperta ódio ou amor, idolatria ou condenação; uma personagem fetichizada, enfim.

Veja bem, vou logo avisando: não sei se “o autor pensou isso” ou não. E não me importa, não fui atrás. O autor morreu e “os verme já comeu”, e o que sobra é o seu texto, e o texto passa, para mim, essa impressão… Certo, não vamos exagerar, eu tenho alguma base pra falar disso.

No programa da ópera, na montagem de 2014, no Theatro Municipal de São Paulo, há textos de Irineu Franco Perpétuo, Arthur Dapieve e Leandro Karnal que me dizem isso. Karnal aponta para algo que Titan Jr. Já fala lá no livro da 34, que a Carmen, o romance, é todo ele uma idealização pautada em certa dose de orientalismo (ou seja, um franco-anglo-americano narrar uma história num país que não seja a França, Reino Unido ou Estados Unidos, criando as personagens dessa história e as situações do enredo com exotismo daquilo que alguém diz que aquele país é).

E, sim, a Espanha do século XIX é algo misterioso e meio místico para um francês da mesma época. A Espanha, e mais especificamente a Andaluzia, em Sevilha, onde acontece a história – por que, afinal, o sul espanhol está perto do mediterrâneo onde navegam barcos turco-otomanos, perto da África muçulmana, a Inquisição Espanhola ainda é forte, e muito crente em bruxas e diabos, a Espanha é vista como redutos de ciganos e outros povos orientais…

Muitas coisas “estranhas”, para um francês vivendo em uma cosmopolita Paris do século XIX. Somando isso ao desejo de criar uma narrativa um tanto moralizante, sobre paixões, sexo, e transgressão a gente chega à… À Carmen!

Mais do que isso, o Karnal fala no programa que a grande sedução de Carmen é que ela, em seu “exotismo” todo, transgride padrões europeus, mas faz isso “fora” da Europa – isso é, fora do eixo cultural e moral França/Inglaterra. Ela atrai os europeus, porque é uma pessoa de um lugar distante, de uma cultura “misteriosa”, fazendo “coisas condenáveis” (transar casualmente, por vontade própria e com pessoas que ela escolhe, por exemplo; enfrentar o poderio militar com flores e deboches).

É a fetichização do diferente, enquanto um produto que serve para certa esfera do público olhar para ela e pensar: “Ufa! Ainda bem que eu não sou isso”. E aí, sempre que Carmen sofre por fugir de um padrão, ela ainda é condenada da forma que eles consideram mais adequada: ela é morta.

A crítica literária Linda Hutcheon tem um livro que chama Ópera: a arte de morrer e lá ela diz, de certa forma, que o sentido da ópera é esse, o de alguém morrer para que alguma ideia relacionada à personagem seja divulgada. No caso da Carmen, a mensagem é um tanto clara: ela morre porque… “ela quis”.

Não, ela não quer morrer. Ela só não quer aceitar a condição imposta, para viver: amar José. Ou seja, ela prefere morrer a ficar do lado dele. Ela prefere ter sua opinião, e – o que é mais grave para um francês do século XIX, e alguns brasileiros do século XXI –, ela prefere ter sua opinião divergente da opinião daquele que é seu par.

Por que Carmen morre? Ela morre porque ela quer ter o direito de decidir.

Se na ópera a gente até vê ela de forma direta (quer dizer, a ópera foi escrita por dois franceses, brancos e impressionáveis), no romance, dá pra dar uma relativizada. Conhecemos ela através de uma terceirização narrativa. Como assim?

Quem narra é um historiador francês sem nome que, lembrando da sua viagem à Andaluzia, lembra do caso do famoso ladrão José, e, conhecendo ele, ouve “da sua boca”, a história da cigana. Ou seja, o romance é um relato de um francês, relatando o que ele lembra de ter ouvido de um espanhol cheio de paixões avassaladoras.

Entendeu, ou quer que eu desenhe? Vou desenhar:

Carmen, a personagem é descrita por um amante espanhol traído e reportado por um francês, que acha que os espanhóis são exóticos.

Ou seja, o que dá para entender de Carmen é, justamente, aquilo que nessa barafunda narrativa toda nos parecer mais suspeito. Será, mesmo, que ela é essa pessoa tão monstruosa que os narradores (homens) construíram?

Carmen, agente da psique

Agora que a gente sabe que Carmen, a personagem, é uma invenção de um francês tarado, cabe a nós vermos o que esse francês disse que ela teria dito. Vejam que eu usei a palavra “teria”. Por quê? Ora, não sabemos o que Carmen disse, sabemos o que ela disse segundo alguém que ouviu ela.

Mas antes é interessante que a gente pense um pouco sobre o porquê dela fascinar tanto os homens. Que são machistas, que gostam de objetificar uma mulher de outro padrão estético e que não a consideram como uma mulher adequada para seu padrão sociocultural são explicações que dizem bastante sobre a natureza das relações de gênero, e poderiam ser o centro do artigo e ponto. Mas eu quero ir um pouco além.

Meus leitores da Úrsula sabem que eu gosto de colocar hipóteses e deixar as respostas por conta deles. Isso é o que farei aqui também.

Uma hipótese que li aqui na revista Hollywood Progressive, e que o Arthur coloca no programa da montagem de 2014 do Municipal, é relativa ao efeito psicológico que Carmen desperta em Don José. Por quê? Porque ela representa para ele aquilo que ele entende como “ruim”.

Qual é o sentido de “ruim”, para um europeu católico branco, de criação tradicional?

  1. Carmen é uma mulher. Karnal fala sobre a misoginia de Carmen, e para pensarmos as razões disso, basta a gente lembrar do pecado original (morder a maçã do conhecimento): teria sido causado por uma mulher, Eva. Por sua vez, quem é a mulher ideal, a mãe de todos, a que vive para sofrer e viver por seus filhos? Maria, mãe de Deus;
  2. Carmen é de uma etnia diferente, é cigana (também chamada de boêmia), ou seja, ela vem de uma cultura que não é a ocidental, judaico-cristã, então, ela sofre algo que hoje ainda existe bastante, mas que, se naquela época ninguém falava, hoje, não podemos ter medo de dizer: ela sofria racismo;
  3. Ela é uma proletária, isso é, ela trabalha em uma fábrica, ela não é de uma classe dominante, sofre preconceito de ordem social;
  4. Ela desafia o patriarcado insistindo em ter relações sexuais com quem ela quiser, quando ela quiser e se ela quiser. Transar por desejo é, pela moral cristã, algo inadmissível, é um dos pecados, é desafiar o pensamento masculino de que ela não tem o direito ao prazer, apenas o dever de dar prazer.

Veja o trecho, no romance:

“Eu era jovem nessa época; pensava sobretudo na minha terra e não acreditava que pudesse haver moças bonitas sem saias azuis e tranças caindo sobre os ombros [indumentária tradicional de camponesas de Navarro, de onde vem Don José]” (p. 36)

E na ópera:

“[Micaëla] (…) Meu José, meu menino,/e você lhe dirá que sua mãe/sonha noite e dia com sua ausência” (Parle-moi de ma mere! – ato 1, N° 6, duo – Carmen, Georges Bizet: Programa do Theatro Municipal, temporada 2014, tradução de Igor Reyner)

“[José] (…) Você/voltaria para mim e se/casaria, nós não teríamos, penso eu,/grande dificuldade em encontrar/uma moça para você, e eu bem sei/aquela que eu lhe aconselharia:/é precisamente aquela que leva/minha carta… Não existe uma outra/de mais sabedoria e mais gentil” (Attends um peu… Já vai lire as – ato 1,  Diálogo falado)

Quando eu li esses trechos, a resenha do Hollywood Progressive e o ensaio do Dapieve, pensei nos termos de Jung: Carmen é a sombra da cultura e da moral de Don José (ele e Mérimée, vamos falar a verdade): ela traz, em si, valores e questões do inconsciente de José, que ele repudia por serem o oposto do dos valores que ele vive e acredita. Ela é tudo aquilo que ele aprendeu a odiar em uma mulher, ela faz aquilo que, na literatura e na ópera, é motivo o suficiente para alguém merecer a morte: vive sua vida sem se importar com o que os machos pensam ou desejam.

Também podemos pensar em Freud — a Carmen seria o id (no Hollywood Progressive, eles falam nesse termo freudiano) de um Don José assustado e abandonado em uma cidade que não é a sua, enquanto que Micaëlla (que não existe no romance, mas é referida pela descrição das tranças e saias azuis), é seu superego, sua mãe que quer proteger ele de tudo e todos, e que quer, inclusive, falar o que ele deve fazer.

Isso é, de um lado, está Micaëlla, representando a tradição, a mãe controladora, a contenção de impulsos sexuais, os arroubos de violência e os desvios éticos e legais. Do outro, está Carmen, representando emoções avassaladoras, a liberdade de agir contraditoriamente, o desejo sexual incontrolado, a ilegalidade (lembremos – ela ajuda contrabandistas). E no meio disso, está Don José, o ego, o resultado dos conflitos desses dois modos de ver e viver a vida.

Carmen como id, na verdade, parece que funciona melhor na ópera que no romance. Na ópera, na Séguidille (quando Carmen está presa, por atacar outra charuteira) a gente lê:

“[Carmen] Meu pobre coração consolável/meu coração é livre como o ar./Tenho galanteadores às dúzias/mas eles não são do meu agrado/”

E depois

“[Carmen] Eu não estou falando com você…/Canto para mim mesmo, e penso…/ Não é proibido pensar. Penso em/um certo oficial que me ama, e que,/por mim, sim, por mim, eu bem que/poderia amar”

E ainda

“[Carmen] Meu oficial não é um capitão/nem mesmo um tenente/é somente um cabo./Mas é demais para uma/cigana/e eu digno em me contentar!” (ato 1, Seguedilha, n° 9)

O que a gente percebe aqui é que Carmen não falou absolutamente nada de tão alusivo ou especial. Falou de um oficial, sem falar nomes, deu a hierarquia dele, e disse que ficaria feliz com ele. Nada, além disso. E Don José, entediado de sua vidinha militar, atacado pelas saudades de casa e por uma carência, ouve o quê? Que ele é o amor da vida dela!

Carmen fala em voz alta um palavreado vago, sobre como a vida dela é solitária e um cabo do exercito ia fazer ela feliz, e José, imediatamente, se apaixona. Olha, eu não sou psicólogo, mas uma paixão assim, tão imediata, me parece falta de inteligência emocional. Sim, parece bastante evidente que ela está tentando seduzir ele, e se livrar da cadeia; tudo bem, isso é parte do ethos de alguém que comete um crime.

Agora, ele se apaixonar assim, imediatamente? Falta a José estabilidade emocional, capacidade de discernir as coisas. A paixão avassaladora da ópera, por essa música, sendo analisada com mais atenção, já indica uma coisa: a culpa de se apaixonar é dele. Ele que perde a cabeça, por ouvir a voz de suas pulsões, de sua carência, de sua instabilidade.

Carmen não tem culpa. Não faz nenhuma bruxaria, não usa nenhuma “magia cigana” que o tédio burguês parisiense adoraria que existisse. Ela simplesmente… fala (e fala palavras bem comuns, como vocês podem ver).

Já no romance, o que a gente tem uma questão que é velha conhecida dos brasileiros: homens embasbacados vendo pelo em ovo, no caso de relações amorosas. A grande diferença da ópera é que, aqui, quem mostra como Carmen fala, é José, o apaixonado. Como Bentinho, José vê e ouve Carmen falar coisas, e, na sua cabecinha de pardal, mil histórias surgem. Começo dizendo que Carmen faz uma graça, José responde, Carmen comenta sua resposta e:

“todo o mundo em volta começou a rir; senti que corava e não conseguia responder nada.

(…)

E, tomando a flor de cássia que trazia na boca, jogou-a com um movimento do polegar bem entre meus olhos. Meu senhor, foi como tomar um tiro… Não sabia onde me meter, fiquei imóvel feito uma tábua. (…) Não sei o que deu em mim” (pp. 37-38)

“Carmen falava basco bastante bem.

Laguna, ene bihotsarena, camarada do meu coração – ela disse de chofre –, você é lá da terrinha?

Nossa língua, meu senhor, é tão bela, que basta a gente ouvi-la em terra estrangeira, para que a gente estremeça” (p. 40)

Outra vez, é Carmen não fazendo absolutamente nada de diferente. Ela joga uma flor contra um oficial: certo, ela está desafiando o poder simbólico e falocêntrico de uma farda, com uma flor (tradicionalmente, uma alegoria da genitália feminina); está jogando contra uma tradição masculina (o soldado), um símbolo feminino (a flor).

Se aqui não temos nenhuma “magia misteriosa de ciganos”, temos algo que, na minha interpretação de homem branco do século XXI, entendo como uma alegoria do enfrentamento do patriarcado. Ela está mostrando que a posição militar dele não significa nada para ela. A masculinidade dele não significa muita coisa para ela – e aqui está um ponto da Carmen que a gente ignora: ela está desafiando “os hômi”.

Carmen está simbolicamente enfrentando o masculino, atacando-o com o que? Com um símbolo do feminino. Lembra que eu falei da sombra? Então: ela está sendo a sombra de José, está sendo o enfrentamento que ele precisa lidar, os valores que ele aprendeu a odiar, literalmente, na cara: uma mulher que mostra segurança, forma e determinação, e que, ao demonstrar isso, reforça a fragilidade masculina da personagem.

Como eu disse, não interessa o que Mérimée pensou em escrever. Mas o que ele escreveu é um padrão de masculinidade que é frágil (embora queira, a todo o momento se mostrar forte e indestrutível), é conservador, é treinado para fazer uma coisa, treinado para pensar o mundo de uma forma quase automatizada, e quando essa forma é enfrentada – por Carmen, digamos –, essa masculinidade tradicional fica abalada.

Carmen, a do romance, é uma alegoria que eu suponho pode ser reconsiderada enquanto ícone do feminismo. Certo, ela esfaqueia outra mulher, provoca suas colegas de trabalho: numa perspectiva, é uma cena que a narrativa machista parece querer reforçar; que provavelmente está tentando dizer: “Olha lá! Mulher não-tradicional é violenta!”.

Porém, se você verem a Carmen como eu, a cena serve para reforçar uma coisa: a personalidade dela: Carmen é a personagem do impulso, do niilismo às convenções. Ela não segue qualquer regra, senão as suas. E mais ainda, podemos pensar nas charuteiras pelo aspecto que o tenente Zuniga fala, no primeiro ato – são mulheres que seduzem os homens e fazem “favores” quando ganham presentes.

São diferentes de Carmen, que enfrenta esse sistema dizendo: “Quando eu lhes amarei, bem/eu não sei./Talvez nunca, talvez amanhã/mas hoje é certo que não” (La clochea sonné, nous, des ouvrières, ato 1, n°3). Ou seja, ela esfaqueia uma mulher, mas na verdade, está esfaqueando um padrão de comportamento, o da mulher submissa aos homens. O de uma mulher que se curva ao falo simbólico que é um rifle militar. E como ela faz isso?

Falando coisas aleatórias, fazendo graças e impondo a sua vontade. O segundo trecho mostra que ela não falou nada de diferente. Ela simplesmente pergunta de onde é José, em língua basca, chama ele de camarada do coração, e ele… Desaba de emoção? Mas que soldado mais instável é esse, que não pode ouvir a detenta falar na sua língua natal que já fica apaixonado? Aliás, que tipo de paixão é essa, que surge de frases tão banais?

Carmen apresenta as paixões de José, ao mesmo tempo em que identifica suas carências: ele é carente de sua tradição, naquela terra que não é a dele; ao mesmo tempo, sente um desejo sexual que, na sua tradição, não pode cumprir, porque é o sexo pelo sexo, o sexo como liberdade. E isso, Carmen é. E isso é o que faz ela morrer no fim do livro (e da peça).

Viva! Viva! A corrida está bonita

Assim, chego ao momento desse artigo que uno as pontas, e jogo mais problemas. O título, que é o nome da música final, pode dizer bastante sobre a ópera e o romance, porque se eu fosse continuar aqui, trecho a trecho, talvez fizesse uma bela análise de Carmen, indicando, sempre, essa questão: a culpa não é dela.

Mas nesse caso, o artigo virava uma tese de umas 200 páginas. Talvez um dia, talvez nunca – hoje não.

O que procurei falar em oito páginas de texto escrito à Times (espaçamento simples) são os motivos que levam Carmen a ser tão popular. Elenco dois.

O primeiro deles é o que se refere ao quê de “exótico”: Carmen é uma construção objetificada de uma sociedade entediada com sua riqueza, buscando alguma coisa pra vencer o tédio (aka, França do século XIX). Aí, ela atende em cheio essa busca: cigana, de pele mais escura, morando numa terra distante, e tendo comportamentos reprováveis para um “cidadão de bem” (francês).

Daí, parte de sua popularidade talvez se deva a isso: ela representa a quebra de um padrão sendo condenado. Em uma leitura tradicional (e esse, acho que é o pulo do gato, que vai garantir Carmen sendo popular nos próximos 145 anos), a ópera e o livro têm um cunho moralista. As pessoas assistem e leem, não só pela música, mas pra sentir pena de José, sentir raiva de Carmen, e achar que as mulheres como Carmen são ardilosas.

Agora, se a gente muda essa leitura, se a gente abandona a razão do exotismo e pensa que parte da popularidade da Carmen é pelo segundo motivo… Carmen representa um padrão de comportamento contrário à tradição, que odeia ela e suas inovações. Carmen é uma mulher proletária, de uma minoria étnica, em um país católico conversador, e vive sua vida e sua sexualidade com liberdade e segurança.

E prefere morrer a ter que abandonar algum desses preceitos!

Ela é o contraponto à identidade frágil e insegura de Don José, todo preocupado em atender a mamãe, em ser um “cidadão de bem”, um homem às antigas, no seu uniforme militar e seu senso de justiça e Carmen vai lá e faz o que? Factualmente, nada: ela provoca, fala sozinha, faz alusões vaga a ele…

…E ele se desestabiliza, perde a cabeça! Ele ouve ela falando, e entende o que ele quer entender, e isso é o sensacional da obra: a culpa não é dela. PAREM DE ACUSAR A CARMEN, A CULPA É DE DON JOSÉ! #Carmeninocente

Carmen e José podem ser alegorias sobre a hipocrisia e idiotia da masculinidade tradicional, e acho que é isso que a gente tem de reforçar na ópera e no romance, e nas adaptações, daqui em diante.

E como sempre faço, vou deixar aqui sugestões de coisas que eu queria ler vocês escrevendo sobre a Carmen.

Nem mesmo me atrevi a ler e interpretar a Habanera. Desculpa, meu povo, mas é que só com a Habanera já dava pra fazer um artigo de mais oito páginas, só sobre a epistemologia do amor em tempos de relacionamentos líquidos, um de mais oito sobre relacionamentos não-monogâmicos etc.

Talvez tenham sentido falta do Escamillo, o toureiro. É uma personagem que daria um outro artigo longo, de novo sobre arquétipos masculinos, e como contraponto com José. José é inseguro, tradicional, tem medo de enfrentar os padrões da vida. Escamillo, ao contrário, é um homem seguro de si, um homem sem medos aparentes ou ilusões românticas. O que um tem a ver com outro e ambos com Carmen?

Nem mesmo quis falar da montagem em que Carmen termina matando Don José, porque acho que essa questão é demasiadamente complexa. Mas acho que não precisava acontecer. O que precisamos fazer é reavaliar a ópera, criticamente, e da tragédia, da violência, do feminicídio da personagem, aí encontrar as respostas que só a arte dá.

Na primeira vez que vi Carmen ao vivo, saí do Theatro Municipal impressionado com a força da música e do texto, pensando que a vida é curta demais para nós entendermos tudo que está lá na obra. Uns cinco dias depois, fui de novo, e a impressão ficou ainda mais forte. Fiz esse artigo e a impressão… continua.

Carmen aguentou 144 anos e milhares de adaptações, por isso. Porque fala sobre quebrar padrões, enfrentar tradições, e talvez seja isso que tenha feito Nietzsche gostar tanto da obra: Carmen é uma mulher com uma gigantesca vontade de potência contra uma imposição. E aí está o grande valor dela.

Para esse ano, e para os próximos 144.

Autor

  • Autor dos livros de poesia Nada (Patuá, 2019) e Hinário Ateu (Urutau, 2020). Já publicou em revistas como Mallarmargens, 7Faces, Zunái e publica com regularidade nas revistas Úrsula e Subversa.

Compartilhe esta postagem:

Participe da conversa