Onde o Coringa Encontra um Serial Killer Brasileiro

imagem: frame de Coringa (2019)

Ao ver o recente Coringa, o escritor Matheus Arcaro se deparou com uma identificação em particular: a trajetória do protagonista do filme dirigido por Todd Philips ressoava a de uma criatura sua, cujo percurso é exibido no romance O Lado Imóvel do Tempo. Nesta entrevista, o autor discorre sobre as semelhanças e distâncias entre os dois, além de comentar o ambiente social capaz de instigar que sejam criados ou de fazer que nos interessemos por esse tipo de personagem.

Além de O Lado Imóvel do Tempo, lançado em 2016, Matheus tem duas coleções de contos — Violeta Velha e Outras Flores (2014) e Amortalha (2017) —, assim como o livro de poemas Um Clitóris Encostado na Eternidade, publicado neste ano. Além do trabalho em literatura, é professor e artista plástico.

Você comentou sobre as similaridades entre o Coringa de Todd Philips e o seu O Lado Imóvel do Tempo. Queria que você aprofundasse um pouco essa relação: no que o seu personagem se encontra com Arthur Fleck, no que se distancia? 

O anseio do homem pela imortalidade vem desde os povos antigos. Para os gregos, por exemplo, não havia castigo maior do que o nome não ser cantado pelos poetas. No meu romance, o protagonista, Salvador dos Santos é um bancário aposentado que tem TOC [Transtorno Obsessivo Compulsivo], poeta frustrado que, ao completar 70 anos, entra numa crise existencial. Percebe que a morte se aproxima e o medo de ser esquecido leva-o a cogitar inúmeras possibilidades para reverter isso até que chega à conclusão de que a única chance que tem para que seu nome seja cravado na história é tornar-se assassino em série. Esse ponto, ao mesmo tempo, afasta e aproxima meu protagonista do Coringa. Afasta, porque Arthur não pretende a imortalidade no sentido estrito. Mas aproxima, porque ele pretende a eternidade em vida, pretende se tornar grande por meio da vingança (quer se vingar de todos os que um dia o humilharam, mesmo que indiretamente). E, para isso, mata pessoas. Coringa é uma ode à desrazão e ao caos, dois termos empregados sem qualquer conotação moral. O Lado Imóvel do Tempo é uma ode à razão instrumental, ou seja, ao planejamento minucioso das mortes por parte do protagonista. Mas essas duas coisas, que aparentemente são antagônicas, abraçam-se no resultado: a morte alheia como válvula de escape para uma existência maltratada ou medíocre.

Esse lugar do sujeito ofendido, abusado, que enfim estoura, me parece ter recebido várias representações recentemente — além do Coringa e do seu O Lado Imóvel do Tempo, podemos lembrar por exemplo de Relatos Selvagens ou mesmo Bacurau. Isso diz algo da nossa época? Por que esse tipo de personagem atrai a atenção — ou por que atraiu a sua?

Antes de responder diretamente, gostaria de fazer uma observação: um ponto que me incomodou no Coringa é a relação traçada entre ofendidos ou doentes e violência. Dependendo da interpretação que se faz do filme, é possível relacionar a doença mental do protagonista como causa direta dos assassinatos. O que, além de inverossímil, pode ser muito perigoso se pensarmos numa transposição do simbólico para o real.

À resposta: Foucault dizia que o homem é uma coleção de discursos. Eu me faço a partir do que falo e do que penso sobre mim. E também do que os outros falam e pensam sobre mim (mesmo que esse outro seja uma abstração ou uma objetivação). Coringa explora questões humanas, com raízes psicológicas profundas: o fardo de simplesmente sobreviver e ter consciência disso. Os sonhos que não se realizam e, ao final, são transformados em triunfo do horror. Mas trata também de questões políticas e sociais: a greve dos lixeiros não é casual, ao contrário: a cidade imunda simboliza como as elites enxergam os excluídos socialmente, como o poder instituído e o capital são engrenagens que massacram o povo. Coringa trata, na verdade, da intersecção entre ethos e polis [grosso modo, o primeiro termo se refere a caráter, modo de viver pessoal, o segundo à cidade, à cidadania], porque muitos de nós somos violentados individual e coletivamente. Coringa borra as fronteiras entre bondade e maldade, entre sanidade e loucura, porque muitos de nós somos enquadrados em conceitos que nada têm de verdadeiros, mas são forjados e canonizados a partir de interesses políticos e financeiros. Coringa é uma metonímia de quem somos nós.

Pegando o outro exemplo citado por você: Bacurau. Walter Benjamin, filósofo da Escola de Frankfurt, afirmou certa vez que a arte, necessariamente, tem cunho político, no sentido de ser denúncia, crítica, um obstáculo ao status quo. E Bacurau nos mostra isso. O filme suscita tantas camadas interpretativas, tantos espectros, que fica empobrecedor tentar descrever aqui. De qualquer modo, listo alguns apontamentos: a não-estereotipação do nordestino (a seca não é assunto central, mas pano de fundo da trama; a tecnologia presente na vida cotidiana); o roteiro, ao mesmo tempo, sutil e denso, com vários momentos de surpresa e tensão; a primorosa interpretação dos atores; o etnocentrismo concretizado na violência bélica; a sexualidade vivida sem moralismo, de modo natural (a mulher afirmando seus desejos, a prostituição, a homossexualidade, a transexualidade); a “volta do filho pródigo” às avessas; as fronteiras borradas entre justiça e vingança etc.

Leia também:

>> “A Política de e a Partir de Bacurau“, por Duanne Ribeiro

Grande parte dos humanos tende a se identificar com as personagens fodidas, com o elemento mais frágil de um conflito. Exemplo trivial: quando, numa partida de futebol, a disputa se dá entre times que não são os do nosso coração, a tendência é torcermos para o mais fraco. Talvez isso seja intrínseco a nós, talvez seja uma resposta estética às injustiças sociais patentes em nosso tempo. Fato é que muitos escritores souberam explorar esse aspecto. Podemos pensar em Dostoiévski e Victor Hugo, para ficarmos em dois exemplos do século XIX. Mas talvez o maior exemplo conhecido no Ocidente seja o Novo Testamento, da Bíblia: “Pois quem se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado”.

Talvez inclusa na pergunta anterior, mas como você acha que esses personagens agem no leitor/espectador? Eles se realizam no personagem, sublimam suas próprias situações de ofensa ou de abuso? Fico pensando se, nesse caso, o leitor/espectador não só consegue uma satisfação temporária e imaginária, e abandona a resolução concreta. O que você acha?

Ouvi pessoas desaconselharem o filme a quem tem propensão à depressão. Eu, apesar de não ser psicólogo ou psiquiatra, não enxergo desta forma. Estamos diante de uma obra de ficção, uma obra de arte, e não da realidade mesma, como bem notou Magritte com seu famoso “isso não é um cachimbo”. Albert Camus, filósofo e escritor, escreveu que arte é o meio mais legítimo de revolta em relação a uma existência que o indivíduo considera medíocre. A arte, como sentenciou Nietzsche, é capaz de transformar os horrores e absurdos da existência em representações com as quais se torna possível viver.

Uma resenha do Coringa diz: “The real left that cares about material issues (…) should embrace Joker. It’s certainly not to be emulated in any way (…)”. Deixando de lado a referência à esquerda, acho engraçado que diga que devemos acolher o Coringa, mas, logo depois, avise que não devemos emulá-lo de forma alguma. Como você vê essa contradição? Desejamos que as coisas estourem, mas não desejamos que as coisas estourem?

Não vejo como contradição. Basta pensarmos nas tragédias gregas. Édipo não é um exemplo a ser seguido pelo cidadão ateniense. Ao contrário: de acordo com a análise de Aristóteles, era na encenação trágica que ocorria a catarse no espectador por meio dos sentimentos de compaixão e temor. Eu, como espectador, sofria junto com o herói trágico, ao mesmo tempo que não queria que aquela desgraça acontecesse comigo. Tais sentimentos eram responsáveis por uma “purificação” na alma, o que contribuía para a coesão do corpo cívico e político, ou seja, para que o indivíduo fosse um cidadão melhor na polis. Se concordarmos com Aristóteles (guardadas as devidas proporções, obviamente), caímos numa análise que Freud fez no início do século XX,  para quem a arte é uma maneira eficiente de sublimação: a violência em termos artísticos pode ser um pharmacon para a violência em termos reais.

 

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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