Para acabar com o tráfico tem que botar fogo no jardim?

imagem: Crianças se protegem de tiroteio em uma das escolas da Maré, no Rio

Eu dou aula na Maré. Ajudo jovens cheios de sonhos a conquistarem seu primeiro emprego. Ensino de tudo para eles. De como se comportar numa entrevista até como ter mais autoestima e confiança. Ensino a trabalhar com planilhas e fazer texto. Ensino a montar projetos pessoais. Ensino de tudo.

São minhas sementinhas.

O problema é o tráfico.

O tráfico não são os carinhas que tu vê de fuzil nas reportagens, assim como o carregador de caminhão de refrigerante não é a Coca-Cola. O tráfico é outra coisa.

O tráfico é um grande esquema que envolve desde os 39 quilos de cocaína no avião do presidente até o crack sendo vendido para um morador de rua.

O tráfico tem gente que não é da favela, que fala inglês e entende de política internacional, para poder negociar fuzis fabricados em outros países até chegar na mão de um menor de idade que vai atirar em alguém.

O tráfico tem menor sem camisa e PM de farda.

O tráfico é uma instituição imensa onde cada pessoa trocando tiro é só um estagiário que serve cafezinho.

O tráfico é nossa erva-daninha.

Agora: eu tenho umas sementes para dar flor e tenho também ervas-daninhas. Vem o gestor eleito e propõe acabar com o mato. Isso é muito bom.

O problema é que ele acha que para acabar com o tráfico tem que botar fogo no jardim.

Isso é burrice.

Porque o tráfico não acaba — o mato sempre cresce — e se perdem todas as flores e sementes.

Não teve um dia neste Rio de Janeiro de meu Deus em que uma operação policial em favela fez não ter tráfico.

Mas sabe o que não teve? Não teve aula por um tempo equivalente a três meses. UM BIMESTRE E MEIO SEM ESTUDO para as minhas sementes.

Sabe o que mais não teve? Não teve entrevista de emprego. Alunos para quem demos encaminhamento de emprego não podendo sair de casa para a entrevista porque tinha um caveirão no meio do caminho.

Outra coisa que não teve? ONG aberta oferecendo esporte e reforço escolar. Não teve, porque os funcionários não podem chegar até lá sem correrem o risco de passar por trocas de tiros.

Em uma semana antes das férias escolares, representantes do monopólio da força do Estado passaram dois dias seguidos ateando fogo no jardim onde trabalho… dois dias inteiros sem qualquer jovem receber atenção e treinamento para conseguir emprego.

“Ah, mas vai deixar o traficante lá?”

Não, não vai. Ninguém gosta de ter traficantes por perto. Nem os traficantes gostam, por isso eles colocam os filhos para estudar. Ninguém gosta.

Mas você ateia fogo no teu jardim só porque deu parasita nas folhas?

Não, porque você não é burro! Você faz uma poda bem orientada, trata, cuida da plantinha para que ela não dê mais isso… Você não coloca um helicóptero atirando na planta!

Você não faz isso porque você é uma pessoa inteligente. Sabe o que funciona e o que não funciona.

Você sabe que o objetivo é preservar as plantas acima de tudo. Você combate as pragas porque quer preservar as plantas, não matar pragas e plantas tudo junto.

Mas quem é a favor dessas operações policiais é inteligente? Ou já se perdeu na sua real intenção?

OU são pessoas que realmente irão se olhar no espelho e dizer “Sou racista e preconceituoso, sim. Não importam as tuas sementes, Rodrigo. As quero mortas também”.

Se for essa a ideia, sinceramente, pode se declarar aqui. Porque quero te identificar bem, pois tudo o que ameaça o crescimento de minhas sementes, para mim, é praga.

 

 

 

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