Por uma Autocrítica Histórica do Liberalismo Brasileiro

imagem: Kevin Simons

Comentei em uma rede social que faz falta, no Brasil, uma obra como a de Domenico Losurdo, Contra-história do Liberalismo (2006). Por conta da tradição marxista em que se insere, Losurdo buscou elementos ao longo da história do liberalismo europeu, no qual as contradições entre os princípios liberais e determinadas práticas ficaram mais evidentes – como o fato de John Locke ter sido acionista de uma companhia de tráfico de escravos, ou Ludwig von Mises ter demonstrado simpatias ao fascismo.

No Brasil, diante das tentativas de grupos liberais em popularizar suas ideias – em uma aliança aberta com os setores mais conservadores da sociedade brasileira – a tendência foi mostrar que aqui, em terras tupiniquins, os nossos liberais nunca fizeram parte do establishment político. Apresentado como grande novidade, o “novo” na verdade é bem velho na história brasileira.

De trás para frente

Recentemente, um jornalista liberal brasileiro, aproveitando-se da fama que o filme Marighella, de Wagner Moura, ganhou nas redes sociais, resolveu atacar a figura de Carlos Marighella afirmando que sua luta armada somente recrudesceu o regime e que Ulysses Guimarães, sim, seria o herói da abertura – procurando fazer do grande pai da Constituinte uma figura liberal brasileira.

Não vale a pena entrar nos méritos do que foi uma oposição efetiva, ou não, à ditadura civil-militar (mas para quem tiver interesse no tema, Maria Helena Moreira Alves e sua obra Estado e Oposição no Brasil são indispensáveis). Mas é importante lembrar que autoproclamados liberais como Carlos Lacerda – ou políticos que foram identificados com o liberalismo como Ulysses Guimarães, ou Juscelino Kubitscheck – apoiaram o golpe de 1964, que derrubou João Goulart.

O apoio ao golpe, tanto na classe política quanto entre intelectuais liberais, cobraria um preço mais caro do que o esperado – a ideia de um breve governo de transição se desfez tão logo o bipartidarismo foi instaurado, em 1965, e as eleições presidenciais que deveriam se suceder naquele ano foram proibidas pela ditadura. Ao longo dos 20 anos seguintes, os liberais foram se afastando do novo regime e tentando construir uma oposição civil no Brasil, que só a partir de 1973 passa a ter organicidade dentro do MDB.

Mas se os políticos ditos liberais procuraram reformular sua participação na política – sem nunca terem feito a autocrítica sobre sua participação em um golpe de Estado que cassou os direitos políticos de muitos colegas – há uma outra sorte de liberais, identificados com o pensamento econômico liberal, que, esses sim, participaram ativamente do governo. Otávio Gouveia de Bulhões (ministro da fazenda) e Roberto Campos (ministro do planejamento) reformularam a matriz econômica brasileira entre 1964 e 1967 e participaram ativamente do governo ditatorial de Castelo Branco.

A esquerda é forçada a encarar constantemente a polissemia do seu território político: as esquerdas, os socialismos, os comunismos, os anarquismos. Mas e os nossos liberais brasileiros? Por que o passado os incomoda tanto?

Após 1967, porém, a ditadura mudou os rumos de sua política econômica – os militares tinham interesse na presença estratégica do Estado em uma série de setores e o apoio civil de base regional dependeu de políticas de crédito facilitado para a construção civil (no que o livro de Pedro Henrique Pedreira Campos, Estranhas Catedrais, é leitura fundamental). Em outras palavras, entre 1967 até 1985, a narrativa dominante é de que o Estado brasileiro inchou e não havia espaço para o liberalismo (algo bastante presente nos discursos de Fernando Collor de Melo, nas eleições de 1989). Logo, faz sentido imaginar que dessa mudança, os liberais rapidamente se opuseram ao regime. Só tem dois problemas nessa narrativa:

  1. Os liberais brasileiros continuaram fazendo parte de governos ditatoriais. O engenheiro e economista Mário Henrique Simonsen é um dos exemplos mais destacados, presente nos governos de Médici, Geisel e Figueiredo, assumindo inclusive pastas ministeriais.
  2. Quando foram para a oposição, contudo, não reivindicaram o liberalismo como valor e sim a democracia. Pós-ditadura, os agrupamentos que reivindicavam abertamente o liberalismo eram o PFL (antiga Arena, sustentação da ditadura) e o PL (uma cisão do PFL).

Os liberais brasileiros poderiam, pelo menos, defender a sua herança na luta contra o Estado Novo (1937-1945), reivindicando o Manifesto dos Mineiros e a atuação de juristas no período de distensão da ditadura varguista. Isso, todavia, não apaga o apoio que alguns nomes da tradição liberal deram ao regime. Osvaldo Aranha, um tradicional liberal político, defensor da concepção liberal de autonomia dos povos na ONU, foi apoiador inconteste de Vargas entre 1930 a 1945 (salvo apenas um breve período de crise de consciência em 1937). E embora a oposição varguista de caráter liberal se colocasse no campo democrático, nos primeiros anos da abertura democrática ela rapidamente se alinhou aos grupos mais autoritários que cassaram o registro partidário do Partido Comunista do Brasil (1948).

Liberais entre República e Império

Se a participação de liberais em regimes autoritários e golpes de Estado no século XX ainda está à espera de um balanço crítico dos seus partidários, talvez um dos problemas de maior monta seja o longo século XIX da política brasileira. Da criação do Partido Liberal (1831) até a autointitulada Revolução de 1930, o termo liberal adentrou em terras brasileiras e aqui, assim como o sushi japonês, ele foi completamente subvertido em seu sentido original.

A Primeira República, por exemplo, viu o liberalismo de caráter federalista ganhar força na proeminência dos estados no cenário político e na desagregação do poder federal de caráter mais centralizado (esse geralmente representado por facções próximas dos militares, que até a criação dos primeiros grandes partidos nacionais, eram a principal instituição de caráter nacional no Brasil). Políticas de câmbio frouxas combinadas com o protecionismo do setor cafeeiro geravam um interessante desequilíbrio do liberalismo econômico com a salvaguarda estatal aos produtores. Por um lado, a indústria era completamente desprotegida, entrando no livre-mercado a fórceps. Por outro, o café, principal produto da balança comercial brasileira, recebia subsídios obscenos. Políticos tradicionais do liberalismo estavam bastante à vontade com o sistema oligárquico, pouco representativo dos anseios da população. José Murilo de Carvalho, em A Formação das Almas, destaca que os índices de eleitores nos primeiros anos da República conseguiram ser menores do que no Império, creditando isso especialmente à substituição do voto censitário para um sufrágio masculino no qual a alfabetização se tornou determinante da cidadania.

Mas antes da República, o Império (1822-1889). E dentro do Império, a escravidão (1530-1888). Alguns dos documentos a seguir podem ser encontrados no site do Senado brasileiro.

Vamos lá:

Em 1831 foi criado o Partido Liberal e em sua carta de princípios estava a defesa da monarquia constitucional brasileira, o fim do poder moderador e o sistema bicameral tanto em âmbito nacional como estadual. Nenhuma referência à escravidão está presente na carta de princípios do partido.

Em 1868 foi formado o Partido Liberal-Radical (uma cisão do antigo Partido Progressista) e em seus princípios estava a “transição” do trabalho escravo para o trabalho livre. Lembrando que essa transição já estava em andamento, oficialmente, desde 1831, por conta das pressões inglesas para o fim do tráfico negreiro. Nada sobre abolição. Nada sobre emancipação. Nada sobre indenizações aos escravos.

No ano seguinte, 1869, os liberais começam a falar em abolir a escravidão em uma reedição da carta de princípios de 1869. Todavia, em 1871, alguns nomes do Partido Liberal estavam opostos ao que consideravam uma intervenção autoritária do Estado na propriedade de cidadãos brasileiros: a lei do Ventre Livre. À medida que libertava os filhos de mulheres escravizadas, o Estado imperial fazia a transição gradual para o “trabalho livre” e, embora oficialmente houvesse apoio de agrupamentos liberais, havia entre muitos desses tradicionais políticos a preocupação sobre a sua base – ou seja, o que fariam os latifundiários que perdiam agora os filhos de suas escravas, minando seus “investimentos futuros”? Em outras palavras, alguém poderia se perguntar: os liberais eram realmente avessos à escravidão no Brasil? Ou a apoiaram por considerar acima de tudo, os interesses de quem eles representavam – a dizer, a elite agrária brasileira?

De fato, os abolicionistas e o longo debate sobre abolição e emancipação (sobre o que indico as obras de Sidney Chalhoub, Machado de Assis Historiador e A Força da Escravidão) contaram com alguns setores vinculados ao Partido Liberal e outros ao Partido Conservador. Mas no cômputo geral, é consensual entre os historiadores que os abolicionistas acabaram formando uma espécie de partido próprio, com cisões próprias, ainda que sem autonomia eleitoral. Os liberais não foram campeões do abolicionismo ou da emancipação – tampouco foram defensores de qualquer proposta de integração das pessoas escravizadas à sociedade brasileira, de políticas indenizatórias ou o que valha. Mas eram lutadores empedernidos na defesa de uma modalidade de laissez-faire que via com muita desconfiança os projetos abolicionistas no Estado imperial que violassem a propriedade dos senhores; mesmo que essa propriedade fosse outros seres humanos.

Afinal, o que é um liberal?

Liberal é, em muitos sentidos, um termo polissêmico. Carrega consigo muitos sentidos. Em artigo de 1988 chamado “A escravidão entre dois liberalismos”, o crítico literário Alfredo Bosi propõe quatro significados diferentes para o termo no século XIX brasileiro: 1) alguém da elite dominante que busca conservar sua liberdade comercial, 2) alguém da elite dominante que compreende a liberdade da representação política para conservar seus direitos; 3) a conservação da liberdade de escravizar outros mediante coerção jurídica e 4) a liberdade de aquisição de novas terras em regime de livre concorrência, permitida pela Lei de Terras em 1850. Embora se possa questionar a força semântica do uso “conservador” – denotando as aproximações entre Conservadores e Liberais ao longo do Império – é emblemático que Bosi compreenda que os muitos sentidos do termo “liberal” precisam ser analisados.

Há muitos sentidos para o termo liberal ainda hoje e, na contemporaneidade brasileira, essa pluralidade ganha força por meio das redes sociais, da fluidez dos debates e de interpretações cada vez mais heterodoxas sobre o debate político. Não se pode negar isso. A resposta sobre o que é um “liberal” parte sempre de dois processos comuns a qualquer outra identidade política: o autorreconhecimento e o reconhecimento coletivo. Afirmar-se enquanto liberal é parte significativa, mas ser reconhecido como tal pelos seus pares é também importante.

Todavia, diante do passado de liberais autorreconhecidos como tais em estruturas tão traumáticas na sociedade brasileira (como as ditaduras do século XX ou a escravidão) e o reconhecimento de seus próprios pares na época, o que chama atenção é o deslocamento temporal, no qual não permite que liberais contemporâneos resolvam debater criticamente seu envolvimento na formação do Estado brasileiro, com todas suas idiossincrasias. De fato, a “novidade” do liberalismo do século XXI é que ele não rompe com o liberalismo do passado – ele simplesmente o ignora. Quando cobrado, sai pela tangente dizendo que aquele “não era o verdadeiro liberalismo”.

Algo semelhante ocorre nas esquerdas; todavia, sua própria formação histórico-política é baseada em processos de autocrítica, reconstrução, depuração, reformulação. São constantemente cobrados por todas as experiências das esquerdas ao redor do mundo, não obstante a pluralidade – dos horrores do Khmer Vermelho às vacilações dos socialistas fabianos; de Stalin à Kautsky, de Allende à Ho Chi-Mihn. Essas cobranças, por sua vez, exigem que as esquerdas reconstruam sua história em exercício constante de crítica e autocrítica. Nenhum partido socialista ou mesmo de esquerda, em termos mais gerais, pode ignorar os erros e acertos de seus predecessores. Em outras palavras, a esquerda é forçada a encarar constantemente a polissemia do seu território político: as esquerdas, os socialismos, os comunismos, os anarquismos. No próprio plural se percebe o movimento que a empurra para um horizonte de debate democrático – por mais que muitos setores das esquerdas sejam avessos a democracia.

Mas e os nossos liberais brasileiros? Por que o passado os incomoda tanto? Talvez porque tenham que definir, justamente, os erros e acertos do liberalismo do passado e com isso abandonar a ideia de que são uma força “anti-establishment” no Brasil. Afirmar a polissemia do liberalismo significa que não há um “liberal” verdadeiro e um “liberal” falso, mas sim que há diferentes liberalismos no Brasil e que portanto, a primeira disputa que se dá entre eles é justamente sobre o significado de ser “liberal”.

Todavia, creio que há outra resposta para essa pergunta: há um receio profundo de não apenas ser identificado como uma força constitutiva do Estado brasileiro – em regimes ditatoriais ou na manutenção da escravidão. É o de ser cobrado pelas camadas sociais que mais sofreram, tanto com o escravismo quanto com o autoritarismo, chagas que deixaram profundas marcas na sociedade brasileira.

O convite, em última instância, é para que os liberais brasileiros façam uma autocrítica em cima do seu passado na História do Brasil. Eles não foram espectadores do que acontecia. Foram sujeitos, escolheram lados, tomaram partidos, fizeram decisões equivocadas…mas constituíram uma tradição política. Não basta simplesmente jogar a história para debaixo do tapete para fugir dos seus debates internos, ou das suas responsabilidades na sociedade. O convite à autocrítica é um imperativo se os liberais quiserem, ao menos hoje, defender uma sociedade democrática com valores baseados na justiça e na equidade.

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Um comentário sobre “Por uma Autocrítica Histórica do Liberalismo Brasileiro

  1. Muito bom o texto. Só achei que seria mais justo citar que tinham muitos liberais contra a escravidão. Alguns nomes importantes da tradição liberal brasileira foram abolicionistas, como José Bonifácio e Joaquim Nabuco. E não da pra esquecer do Luiz Gama, que chegou a fazer parte do Partido Liberal.

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