Cantemos o Hino, Que Seja

Vai se fazendo mais claro porque a direita e o eleitorado que grudou nela acreditam tão piamente que havia uma “doutrinação” nas escolas: a questão é que, estando à frente de um governo, eles não podiam imaginar que se fizesse outra coisa a não ser isso. A mão pesada com que se lançaram ao tema do hino nacional o demonstra.

Tratava-se então de uma implicação simplória: quem tem o poder alastra propaganda pelos espaços institucionais; a esquerda tinha o poder, logo, transmitia isso aqui que eu “tenho certeza” são as ideias da esquerda. E, agora que temos o poder, vamos comunicar as nossas. O Escola Sem Partido sempre foi Escola Com o Meu Partido no Lugar.

Mão pesada, o digo pois o ministro da Educação Ricardo Vélez Rodríguez fala em filmar a execução do hino nos colégios (depois ele mudou de ideia) e a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos Damares Alves adjetiva cantar o hino como uma prática “obrigatória”. Temos a injunção, o monitoramento — só falta a punição para o não cumprimento.

Mais insidioso, tudo se passa como se a vontade de cantar o hino devesse ser espontânea e alegre; a naturalidade é a atitude a qual devemos alcançar nesse quesito. Opor-se a isso é denunciar que o Brasil não nos ocorre naturalmente; nos falta Brasil se cantar o hino é incômodo. Daí se discernem brasileiros mais ou menos brasileiros.

Embora se entreveja o broto fascista nesse tipo de lema, a esquerda está fadada a fracassar ao antagonizá-lo. Pois a oposição é incompreensível para quem vê por cima: “Mas qual o problema de cantar o hino?”. À primeira vista, recusar denota só desunião.

Por outro lado, “Brasil” (as aspas têm o objetivo de indicar o quanto um país é mais uma ideia do que algo aferrado ao território) funciona de fato como um ponto de encontro para todos nós em maior ou menor medida. Em momentos nos quais visar e reunir-se em alguma idealidade soa feito uma solução para problemas prementes, “Brasil” prospera.

Assim, sendo difícil comunicar o problema de impor nacionalismos e havendo produtividade na noção de país (que seria temerário ignorar), são precisas outras estratégias para se antepor aos bolsonarismos.

Explicitar no hino seu conteúdo histórico, suas filiações, mesmo a estética que se concretiza nele. Expor o papel que elementos como os hinos cumprem no firmamento dos estados-nações — ou como esses últimos dependem dessas táticas para se apresentarem eternos.

Dizer, que seja, cantemos o hino — mas isso basta de um ponto de vista educacional? Indicar o quanto se pode ensinar nesse sentido, e o quanto se estaria limitando as escolas a fortalecedoras do estado se não o fizermos. Opor não picuinha a projeto, mas projeto a projeto.

De resto, será suficiente a fé na criatividade dos alunos. Todos sabemos que o Hino da Independência —

“Já podeis, da Pátria filhos…”

— virou:

“Japonês tem quatro filhos…”

À linguagem rígida não se adequam tão bem as crianças, os adolescentes, os artistas e os filósofos (quem mais?).

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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