Daniel Aarão Reis: “Vivemos uma conjuntura crítica. A democracia está ameaçada”

Na última segunda-feira, dia 1 de outubro, o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, em discurso num seminário organizado por ocasião da comemoração dos trinta anos da nossa Constituição, disse que hoje prefere se referir ao golpe militar de 1964 como “movimento de 1964”.

A declaração, feita na esteira de manifestações pró-ditadura e de declarações do candidato a vice-presidente Hamilton Mourão de que a possibilidade de um autogolpe deve ficar aberta caso o candidato Jair Bolsonaro seja eleito, causou espécie em juristas, historiadores e pessoas que viveram o período.

Toffoli afirmou que tomou essa decisão graças a um “aprendizado” com o ministro da justiça Torquato Jardim, e, em seu discurso, como que para embasar o que estava sendo dito, citou trechos de textos do historiador Daniel Aarão Reis, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor de diversos livros, entre eles Ditadura e Democracia no Brasil (Zahar, 2014).

Por conhecer, ainda que superficialmente, essa obra, decidi entrar em contato com Aarão Reis para conversar sobre a declaração do ministro e perguntar se ele poderia conceder uma entrevista a respeito não apenas desse ocorrido, mas também de outras questões importantes. 

Na entrevista a seguir, o professor fala sobre a situação que estamos vivendo, com a ascensão de Jair Bolsonaro, e o aumento do número de pessoas que apoiam a ditadura militar, entre outros assuntos.

Temos visto, nos últimos anos, aumentar o número de apoiadores do regime militar. E não são apenas reacionários que apoiaram o Golpe em 1964: são, também, jovens estudantes, alguns deles até acadêmicos de direito. Como o senhor, historiador e professor, vê isso? Onde erramos?

Um tema complexo. Há fatores mais históricos e outros, mais conjunturais. Do ponto de vista histórico, é preciso considerar o conservadorismo da sociedade brasileira, bastante consistente, medular. À direita e à esquerda, temos vieses autoritários, centralistas, estatistas, construídos ao longo de décadas. Em termos conjunturais, há fatores agravantes: a desmoralização do sistema político, a crise econômica, a insegurança generalizada, os shows de ostensiva corrupção, tudo isso corroeu a autoconfiança das gentes e suas convicções democráticas, incentivando autoritarismos de toda a sorte e suscitando a nostalgia de governos fortes e ditatoriais.

Convém, no entanto, distinguir entre um núcleo duro convicto, de extrema-direita, e a multidão de desencantados e desiludidos que lhe dá hoje sustentação eventual.    

No seu livro Ditadura e Democracia no Brasil o senhor afirma que “não há como se libertar da ditadura sem pensar nela”. A anistia foi uma tentativa de nos libertar da ditadura sem pensar nela? Em outras palavras: a anistia foi um erro?

A anistia foi um grande acerto, mas parcial. Mas as grandes maiorias preferiram silenciar sobre os crimes da ditadura. Como se dizia na época: olhar para a frente e não pelo espelho retrovisor. Resultado: jogou-se para debaixo do tapete uma discussão essencial sobre o regime ditatorial, sua dinâmica, suas características. Aquilo ficou ali, fermentando, esperando uma hora para reemergir.

O senhor acredita que a anistia tem alguma parcela de culpa nessa onda de nostalgia ditatorial e apoio ao regime militar? Que a tentativa de colocar panos quentes sobre o passado contribuiu para uma não consolidação do quão terrível foi o regime?

Os panos quentes não devem ser atribuídos apenas à anistia, mas ao conjunto do processo de transição, transicional (longo) e transacional (baseado na negociação). A anistia foi apenas um elo, importante, mas apenas um a mais. Agora, certamente, a anistia de torturadores que sequer foram julgados foi uma aberração bem brasileira. Anistiado, normalmente, é o sujeito acusado, julgado, condenado. Os torturadores sequer foram listados, ouvidos. Uma expressão da parcialidade do processo.

Por outro lado, a Comissão Nacional da Verdade, ao retirar esses panos quentes, pode ter feito reacender a sanha ditatorial que ainda não havia sido apagada?

A Comissão Nacional da Verdade, a seu modo, também pôs panos quentes. É verdade que suas denúncias ecoaram, sobretudo ao definir claramente as responsabilidades dos generais-ditadores. Ao mesmo tempo, nunca se rebelou contra a dependência em relação à presidência da República — uma comissão da verdade precisa de autonomia — política e jurídica. Isto nunca aconteceu com a nossa CNV. Por outro lado, faltou coragem para enfrentar os comandos militares, que se fecharam em copas, recusando-se a entregar arquivos essenciais ao trabalho da CNV. É verdade que aí a responsabilidade principal cabe à presidência da república, que se agachou diante dos arreganhos dos chefes militares.

Infelizmente está na moda citar o livro Como as Democracias Morrem, de Steven Levitky e Daniel Ziblatt. “Infelizmente” porque isso é um sinal de que a nossa democracia está em perigo. Nesse livro, os autores mostram como grupos políticos podem enfraquecer uma democracia. Tendo em vista o que aconteceu no Brasil nos últimos anos (a deposição de uma presidente eleita, a ascensão de Jair Bolsonaro), e o que aconteceu nas últimas semanas (declarações pró-intervenção militar de generais da reserva, o ministro do STF afirmando que prefere se referir à ditadura militar como “movimento de 1964” e proibindo que a Folha de S. Paulo entreviste o ex-presidente Lula), podemos dizer que estamos, agora, sim, vivendo uma “ditabranda”? Ou um clima de pré-golpe?

Estamos vivendo uma conjuntura crítica. A democracia está ameaçada e venho defendendo há tempos a necessidade de um amplo movimento de defesa dos valores democráticos, mas acho um exagero dizer que vivemos uma ditadura ou uma “ditabranda” (não existe ditadura branda), ou, como dizem alguns exaltados, um estado de exceção. É preciso não brincar com as palavras — ditadura é estado de exceção, é rompimento claro com o estado de direito. Ainda não estamos aí, felizmente.

Como o senhor explicaria a um leigo qual a diferença entre: “movimento”, “revolução” e “golpe”?

Movimento é uma articulação de vontades em luta por determinados objetivos. Pode haver movimentos democráticos ou golpistas. Movimentos revolucionários, reformistas ou reacionários. Em 1964, houve no Brasil movimentos reformistas de esquerda e movimentos de direita de conservação da ordem. Estes — envolvendo diferentes segmentos políticos e sociais — resultaram num golpe de estado, ou seja, rompimento violento com o estado de direito existente, conduzindo a mudanças políticas importantes. Já uma revolução social é um processo histórico bem mais profundo — envolve mudanças estruturais — econômicas, sociais, políticas e culturais. Chamar o golpe de 1964 de revolução foi uma manobra de propaganda, sem nenhuma consistência. Abolir o conceito de ditadura, substituindo-o pelo de movimento é uma aberração, tanto mais esdrúxula quando vinda de um jurista.

Agora, uma pergunta não apenas para o historiador e professor, mas também para o cidadão Daniel Aarão: durante os governos petistas, principalmente nos anos Lula e no primeiro mandato do governo Dilma, o Brasil viveu um clima de muita prosperidade e até mesmo de harmonia. O PT cometeu diversos erros, é verdade, mas o antipetismo exacerbado que vemos em parte da sociedade não parece ser consequência desses erros, mas sim de outras questões. Em sua opinião, de onde vem tanto ódio? E o que podemos fazer para amenizar isso, para restaurar o mínimo de sensatez nessas pessoas (se é que isso ainda é possível)?

Os petistas — e também os tucanos — têm responsabilidade parcial no que vem acontecendo. Afinal, foram governo durante 20 anos. E polarizaram as lutas político-eleitorais durante todo este tempo. Como subtrair-lhes as responsabilidades evidentes que têm? Eram as forças reformistas por excelência da mal chamada “nova república”. Mas preferiram aliar-se a forças do “atraso” e ajudaram a aprofundar, com elas, mãos nas mãos delas, esta mixórdia de cumplicidades entre empresários e políticos, esta desmoralização do sistema político que ensejou, no quadro de uma profunda crise econômica, o desencanto que dá base, hoje, a tendências autoritárias de direita. Os petistas em particular, no governo e fora dele, presidiram um processo de desmobilização dos movimentos populares com real impacto na capacidade das lutas sociais. O pior é que não fazem autocrítica, limitando-se a indicar, vagamente, a existência de erros.

Apesar do desgaste, o petismo é a força hegemônica das esquerdas brasileiras. Ou se refunda como corrente de esquerda ou corre o risco de prejudicar o conjunto das forças progressistas brasileiras. 

Autor

  • Autor dos livros O escritor premiado e outros contos e Mais um para a sua estante, e um dos contistas da antologia O livro branco – 19 contos inspirados em músicas dos Beatles + bonus track. Mora em Feira de Santana, Bahia.

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