Srijon Chowdhury: “Quantas Utopias Podem Coexistir e Sangrar umas nas Outras?”

O idealizador da Utopian Visions Art Fair fala sobre arte não-conformista, que nos confronta com o que poderíamos ser, com “futuros possíveis”

imagem: Layet Johnson

Em meados de setembro, foi realizada na cidade de Portland, em Oregon, nos Estados Unidos, a feira de arte Utopian Visions, que instigava os artistas convidados a produzirem trabalhos que trouxessem imagens de “futuros possíveis”. Úrsula conversou com o idealizador da mostra, o também artista visual Srijon Chowdhury, que comentou as perspectivas da exposição e as potencialidades da esperança, dos ideais e da crença na busca de felicidade e na construção de um mundo melhor: “Utopias são vislumbres de outros mundos, podem nos inspirar a trabalhar para que se concretizem — são uma chance de revolução por meio da reforma.”

“Utopia”, por exemplo na obra de Thomas More, aparece como perspectivas de novas organizações sociais; em outros autores, denota a possibilidade de “novos homens”. Foram essas as linhas seguidas na feira? Que discussões foram trazidas pelos trabalhos expostos?

Para mim, a literatura utópica ou distópica é aquela em que o autor encontra um meio de apontar problemas específicos que ele vê na sociedade e criar um mundo em que eles não existam ou em que estejam exacerbados. Thomas Mora estava especificamente escrevendo contra a monarquia e o catolicismo. Quando convidei artistas e curadores [à feira], eu pedi para apresentarem obras que pensassem ou criassem futuros possíveis.

Demian DinéYazhi’ trouxe um manifesto para a inclusão de arte indígena no âmbito da arte contemporânea. O Instituto de Artes e Relações Interespécies [Institute for Interspecies Art and Relations] está tentando reformatar a forma como os humanos veem a si mesmo em relação a outras espécies. Manuel Arturo Abreu fez um formulário para que americanos se casem com imigrantes, de modo a que esses últimos legalizem a sua situação. Layet Johnson recriou uma placa icônica da madeireira Mr. Plywood, que tem uma loja do outro lado da rua onde a feira aconteceu; a versão de Johnson dizia: “Mr. Plywood é vegano”.

Nós vivemos em um mundo saturado de distopia. Projetar um futuro usualmente toma essa forma. “Poderia ser pior” parece ser a única visão crítica. Qual a importância ou quanto efeito pode ter uma mostra que trabalha na direção oposta?

Nossa época parece apocalíptica, e há muita coisa operando contra nós – todo pequeno passo na direção oposta ajuda. Ter mais pessoas inspiradas e engajadas em trabalhar tendo em vista algo melhor ajuda. A arte é um excelente espaço para que novas ideias sejam tentadas, é um espaço de esperança e crença. As pinturas das cavernas colaboravam com um caça bem-sucedida, por que uma exposição pensando um mundo melhor não poderia ter o mesmo efeito? Nosso mundo é baseado em crenças que produzem consequências bastante reais, a crença é o primeiro passo, a disseminação é o segundo.

“Utopia” soa às vezes como um palavrão. Pode-se tomá-la por “ideias bonitinhas que não funcionam”. Isso é um preconceito? De que forma podemos valorizar as utopias?

As utopias não são sempre bonitinhas, na verdade eu diria que elas são um palavrão porque mais frequentemente uma utopia significa exclusividade, enquanto distopia significa “para muitos”. O fascismo é um tipo de utopia. Digo “visões utópicas” no plural porque eu estou interessado em quantas utopias podem coexistir e sangrar umas nas outras. Assim também foi elaborado o espaço expositivo da feira, com alguns projetos se estendendo no espaço de outros. Mesmo que nem todo mundo esteja interessado nos plugs anais florais, sagrados, sádicos que Genevieve Bellevue e Themba Alleyne apresentaram, eles ainda merecem um lugar no mundo.

Um autor que me interessa, [o filósofo britânico] Isaiah Berlin, opositor das ideologias e defensor da moderação política, disse: “A liberdade dos lobos é a morte das ovelhas”. Com o recrudescimento do fascismo e com o capitalismo tardio matando o nosso mundo, como nós realizamos uma mudança radical sem criar mais ódio e violência? Utopias são vislumbres de outros mundos, podem nos inspirar a trabalhar para que se concretizem — são uma chance de revolução por meio da reforma.

Nosso mundo é baseado em crenças que produzem consequências bastante reais, a crença é o primeiro passo, a disseminação é o segundo

As visões distópicas são focadas no presente, exacerbam aspectos negativos dos tempos em que vivemos. É também assim que a criação das utopias funciona? Por quais meios os artistas expostos na feira projetam novas maneiras de existir?

Com certeza. O Instituto de Ecologia Queer [Institute for Queer Ecology] apresentou, por exemplo, Mecha Body Mall, da dupla Posadas (Pablo Herza e Ignácio Hernández Murillo). Eles criaram uma linha de roupas para venda e montaram uma passarela de moda [de modo a indicar as relações socioeconômicas implicadas nas práticas relacionadas ao uso de vestimentas]. Usaram elementos do presente para fazer com que certas ideias fossem derrubadas e substituídas. Essa é uma estratégia empolgante para artistas e empreendedores. Hipercapitalismo — forçar o capitalismo até os seus limites, de modo que ele desmorone mais rápido.

Baudelaire disse: “A beleza não é nada mais nada menos que a promessa de felicidade”. Assumindo “utopia” como uma ferramenta, e sabendo que a beleza não é mais um ideal único para os artistas, podemos dizer que “a arte não é nada mais nada menos que a promessa de felicidade”? Ou, dito de outra forma, devemos perseguir essa promessa?

Os Estados Unidos da América começaram como uma espécie de experimento utópico. Apesar dos seus óbvios problemas e injustiças, seus documentos fundadores carregam ideais na direção dos quais devemos trabalhar, como a vida, a liberdade e a busca da felicidade. A busca da felicidade deve ser garantida para todos.

A beleza e a arte são ambas ferramentas para a nossa percepção da realidade. Tentei encontrar uma citação [do filósofo alemão Theodor] Adorno em que ele fala sobre ter tido a experiência da guerra de modo a sabermos apreciar pinturas de flores, mas não encontrei; essa outra, no entanto, parece mais clara: “A arte respeita as massas confrontando-as com o que elas poderiam ser, em vez de conformá-las ao seu estado degradado”.

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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