Uma Anti-Resenha para Julia Dantas

1. Escrevo em abril de 2018. Abril, o mês mais cruel, fala T. S. Eliot; não entendo de literatura norte-americana, e nem o que está a acontecer no Brasil, no entanto entendo que, em 2018, Eliot está certo. Abril de 2018, o mês mais cruel. Isso, unicamente porque ainda não chegamos em maio, que tende a ser bem pior, porém, eu queria começar essa anti-resenha por algum lugar, e esse mote me pareceu adequado: não é propriamente sobre o livro de Julia Dantas, mas carrega precisamente o aspecto central dele – fugir para descobrir que a fuga é o enfrentamento.

2. O livro que eu estou falando é Ruína y Leveza de 2015 e foi publicado pela Não Editora. Julia é gaúcha, formada em jornalismo, estudou crítica de arte na argentina, escrita criativa na Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio Grande do Sul, e tem menos de 40 anos. O livro esteve entre os finalistas dos prêmios Açorianos de Criação Literária e São Paulo de Literatura. E o autor começou a fugir de novo de seu assunto.

3. Fugir. É natural que eu esteja fugindo do ponto principal do que seria uma resenha, o enredo, porque escrevo este texto pretendendo fazer dele uma anti-resenha que culmina em ser, exatamente, uma resenha, por muitos motivos, a começar por minhas desilusões pessoais com a crítica literária, a intelligentsia brasileira, a vida política cultural brasileira… e também porque fugir é o ponto central da obra de Julia Dantas.

4. Sara é a personagem de Julia, e não me peçam para ficar comparando autor e personagem, que isso não me interessa. Sara é a personagem principal e, logo na primeira cena da obra, vemos ela e Lucho, um argentino hipster, visitando uma mina não-turística na Bolívia. Começa um tremor de terra, sem riscos aparentes, mas o evento sísmico impõe que a dupla tenha de esperar ali, naquele lugar pouco seguro e iluminado.

5. Como Sara vai parar lá? Por que? Eis a fuga, a primeira de tantas que compõem o romance de Julia: por meio de um revezamento cronológico, vamos descobrindo que Sara é uma millennial (isto é, uma jovem de classe média, branca, com um bom emprego, acesso a cultura, estudos e informação – mas nós gostamos de resumir isso tudo em uma palavra, com 2 L e 2 N ainda por cima) que estava com sua vida perfeitamente organizada. Até ela descobrir que não estava.

6. Quase casada, bem empregada, morando em uma cidade grande, Sara pensa que sua vida está nos eixos; vive o sonho de estabilidade financeira que todos nós temos… Até descobrir que os “eixos” e o “sonho” em questão não são os dela, são uma projeção de vida ideal que nós (millennials) ficamos ouvindo e vendo durante todos os anos 1990 e 2000 no Friends. E, de repente, ela percebe que seus ideais não são tão óbvios quanto ela pensava.

7. Nós elegemos um governo de “esquerda”, os Estados Unidos elegeram um presidente negro. As universidades começam a ser mais acessíveis. Temos uma reserva de pré-sal gigantesca em nossa costa. Informações em tempo real, em celulares de alta tecnologia, e com milhões de aplicativos que fazem tudo o que precisamos. A vida dos millennials está perfeita; a vida de Sara, com certeza, não? Não!

8. Sara, de repente percebe como sua vida está chegando a um ponto que não é exatamente o que ela sonhava, primeiro, porque nem ela ao certo sabe o que ela sonhava. O romance de Julia, inclusive, é cindido em algumas partes, por páginas pretas que são sonhos de Sara e esses se mostram como metonímias dos paradoxos de nossos dias: estamos avançando tanto como sociedade na mesma medida em que regressamos, nossa oposição a um poder pré-estabelecido é só outra face desse poder, e nossas revoltas consistem em atingir esse status contra o qual nos revoltamos.

9. Sara decide, então, fugir. Fugir do status quo que ela julgava estar fugindo enquanto, gradativamente ia assumindo-o sem perceber. Decide buscar (e aqui é onde acredito que meu parágrafo 1 ecoa) algo diferente do que havia tido até então. Ela percebe, primeiro, que as suas respostas estavam erradas; algo normal nas contestações, via de regra. E percebe também que (deus, adoro repetir essa fórmula!) suas perguntas deveriam ser outras: a estrutura de sua vida era uma resposta – uma resposta a uma pergunta que não era sua.

10. Assim, Sara decide partir em busca de um novo motivo de busca na sua vida. Não vou dizer que ela vai buscar “um novo sentido pra sua vida”, porque esse é um dos problemas que ela começa a desafiar em sua jornada. Assim, Sara vai até o Peru, iniciar seu caminho de reconhecimento.

11. Machu Picchu poderia ser uma saída fácil para uma jornada dessa natureza, porque nós adoramos conferir esoterismos a ruínas de povos destruídos por europeus. Poderia, um futuro do pretérito, porque Julia foge dessa análise fortuita em sua obra no momento em que contrapõe o turismo a realidade. A ruína não é só Machu Picchu – é também a realidade do que é ser pobre, em um país pobre, no século XXI; ruína, porque a “Cidade Perdida dos Incas” é a ruína do presente sobre o passado, ruína da essência de uma vida diante da forma aparente dessa vida, ruína das ideologias (sempre elas!) sob a amorfização das relações interpessoais.

12. E quando tudo se converte em ruínas, a vida fica leve. Leve como Milan Kundera já falava lá na Insustentável Leveza… e Ítalo Calvino nas suas Seis Propostas…: a existência assume um hedonismo terrível, porque não temos quase nenhuma certeza sobre o futuro, não temos uma base sólida para firmarmos nossa vida. Sara não tem um futuro e não tem um passado – ela tem o seu cotidiano, tem seus amigos que conhece no Peru (naquele instante, porque é lá que estão suas certezas), tem a metáfora da estrada das músicas Solo se trata de vivir (do argentino Litto Nebbia, outrora gravada por Mercedes Sosa) e Pétalo de Sal (de Fito Páez).

13. “Andar por outros caminhos/ E esquecer o anterior” (Nebbia). “Nada te importa na cidade, se ninguém te espera” (Páez). A essência de Sara e de nossos dias é essa, é viver o hoje. Fugir de perguntas prontas, fugir de fórmulas antigas, fugir por uma estrada nova, por um tempo novo, um tempo de indecisão indefinida, mas nova. Nossa natureza é perceber que o mundo segue extremamente imprevisível, e que nossas melhores possibilidades são nos tornarmos uma ruína grandiosa (só 30% original, vale destacar). Por isso que eu disse no primeiro parágrafo: abril é o mês mais cruel – porque ainda não chegou maio.

Autor

  • Autor dos livros de poesia Nada (Patuá, 2019) e Hinário Ateu (Urutau, 2020). Já publicou em revistas como Mallarmargens, 7Faces, Zunái e publica com regularidade nas revistas Úrsula e Subversa.

Compartilhe esta postagem:

Participe da conversa