Ossada Perpétua

“não há tributo mais pesado que o da morte, e, contudo, todos o pagam, e ninguém se queixa, porque é tributo de todos.”

Pde. Antonio Vieira (sermão proferido na Igreja das Chagas/Lisboa, 1642)

 

1.

Não lembro onde enterraram meu pai.

 

Parecia besteira — vou lá perturbar? não vou —, até que a mãe pediu para exumá-lo.

Quinta-feira, no sítio.

É que ela teve um sonho.

Pediu pro Arturo ligar pro Albertinho. Albertinho ligou pra mim.

 

— Ciça, a mãe quer ver a gente.

— Ué. Por quê?

— Não sei.

— Não perguntou?

— Perguntei. Era Arturo.

 

Eu liguei pro Rafa. Rafa pediu carona. Quinta pela manhã fui buscá-lo na rodoviária. Ele continuava o mesmo: cansado, tímido e aleatório. Quis saber de mim, mas não há o que saber. Perguntei da viagem.

 

— Um cara pegou no meu pau.

— Hein?

— Um cara. Sentou do meu lado e pegou no meu pau.

— E o que você fez?

— Nada.

— Nada?

— Pedi pra ele tirar a mão. Aí ele tirou.

— Ah… Bom.

 

Chegamos antes de Albertinho.

Arturo angustiado na varanda.

Envelhecera.

A mãe lá dentro cantando Alceu Valença.

Pensei algo terrível.

 

— Ela não tá morrendo não, né?

 

Está mais saudável e lúcida que todos nós juntos.

Lamentou minha namorada e a filha que Rafa abandonou.

Engordou, até.

Mas não quis dizer o porquê daquilo. Não ainda.  Não agora. Não antes de vermos como o pomar está enorme e lindo.

 

— Pega umas laranjas pra fazer suco.

 

O pomar que cultiva só por cultivar, só pelo prazer de ver dar fruto, e a piscina que limpa só por limpar, porque não há quem use, e os filhos que criou para que fossem decentes, e nada mais espera deles, porque as coisas se realizam na possibilidade e querer mais que isso é corruptivo à sua natureza.

 

— E uns limões também, Ciça.

 

Que nos convocasse para qualquer papel que não aquele, que vínhamos exercendo há uma média de três décadas, era, portanto, apavorante.

 

— E jabuticaba, gosta?

 

Só que o direito de entrar em pânico já havia sido reclamado quando nasci. E Albertinho apareceu com Lynch.

Lynch é um imbecil, como todo labrador, mais ainda por ser velho e gordo, mas Arturo tem medo de cachorro.

Tivemos que prendê-lo no galinheiro desgalinhado.

Não sem alguma discussão.

 

(MÃE: deixa ele solto.

ALBERTINHO: tenho medo de que ele vá pr’olho d’água.

MÃE: ele mal consegue andar.

EU: trancar cachorro velho é uma covardia.

ARTURO: cachorro velho não obedece o dono.

MÃE: que besteirol.)

 

Só que Lynch não pode mais ficar sozinho por muito tempo.

Tenta se matar.

E a esposa de Albertinho também.

E ele também.

 

— O que houve, afinal?

 

E todos nós, suspeito, desde que meu pai morreu.

 

 

2.

— Tive um sonho.

 

Era um sonho frequente, na verdade.

Sentamo-nos à cozinha para ouvi-lo. A mãe serviu café fresco coado no pano e lá fora estava molhado.

Em tempos melhores, eu jogava terra úmida em Albertinho e ele entrava em casa chorando e sujando o chão.

 

— Sonhei com o pai de vocês.

 

Arturo quase sempre limpava tudo a tempo, e Rafa levava a culpa.

Albertinho me perdoava.

Ficava tudo bem.

Não tinha por que não ficar.

Até que a mãe se metesse.

 

O SONHO

 

Seu pai me chama. Repete o meu nome, incansavelmente, então parece que eu acordo, mas continuo sonhando, e estou ali, perto da figueira. Não o vejo, só escuto sua voz, que continua falando comigo, e parece vir de dentro da figueira. Ele pede socorro, diz que tá desesperado. Me ajuda, meu amor, me ajuda. Me tira daqui. Mas eu não consigo me mexer. Eu não consigo dizer nada. Eu só consigo escutá-lo. Me ajuda, me ajuda, me ajuda. Então acordo.

 

E esperamos.

Uma porta batendo, a chuva, uma ordem que delimitasse o fim.

Só que a mãe não diz mais nada.

Eu tomei a iniciativa.

 

— Tirar ele de onde?

— De onde ele está.

— Onde ele está?

 

Estupidez.

As respostas óbvias são as únicas respostas.

 

— Eu acho que o seu pai está sofrendo muito pra fazer a passagem. Ele não quer ficar longe da gente.

 

Fomos a dois centros espíritas desde sua morte, eu e a mãe.

Um era kardecista, o outro umbandista.

No kardecista, recebemos um comunicado espiritual: ele está muito atordoado ainda, mas estamos fazendo o possível para que sua estadia seja a mais tranquila possível.

No umbandista, disseram que a mãe precisava ouvir mais o que lhe diziam aqueles que estavam com ela.

Desde então, ela tenta.

Demais, até.

 

Arturo sofre, mas nos pede paciência. É o compreensivo:

 

— E o que a gente pode fazer, mamãe?

 

Rafa e Albertinho são pacóvios.

Um, por nunca ter aprendido a viver; o outro, por achar que a vida é obediência:

 

— O que você quer que a gente faça?

 

Porque a mãe não sabe de tudo, e também nunca fez questão de dizer o contrário.

Mas que coisa terrível, para um filho, ter que descobrir sozinho o que é verdadeiro no mundo.

Já eu puxei ao meu pai, que expressa suas discordâncias mesmo depois de morto. Com sorte, nos confundem por autênticos.

 

— O que você tá pensando?

 

A INTERPRETAÇÃO

 

Nunca quis enterrar teu pai lá. Nós conversamos muito sobre isso. Íamos ver como faz com a justiça,   só que não deu tempo, e vocês estavam longe, Arturo acabou resolvendo tudo sozinho. Eu não conseguia pensar, e ia fazer o quê? Mandar esperar? Agora ele tá me cobrando.

 

E como quando precisou nos dizer que estava morto, deixou para que o concluíssemos sozinhos.

 

 

3.

A autoridade é uma invenção.

Assim, pois, a culpa; assim, pois, a vergonha; assim, pois, o vilipêndio.

 

Mas é claro que me opus.

E Arturo ficou roxo.

E Rafa se encolheu na cadeira, como se tivesse 10 anos e a mãe o pusesse de castigo.

Só Albertinho não reagiu, porque se contenta com a lógica mínima, com o improvável possível.

Para ele fez algum sentido, e se fez algum sentido para ele deveria fazer para nós também.

 

Discutimos.

 

Internar a mãe me parecia muito mais congruente. Arturo se ofendeu por ela. Rafa não queria voltar pra prisão. E a justiça? É um absurdo. Os mortos não sentem. Mas Albertinho entendia. Na Indonésia tiram os cadáveres da tumba pra festejar.

Mas é absurdo.

E se for verdade.

Ainda é absurdo.

Rafa fica no carro.

Não é esse o problema.

Ninguém nem liga pro cemitério, olha a cidade como tá.

Não é esse o problema.

A mãe tava falando sério.

A mãe tá louca.

A mãe tá tomando os remédios.

Rafa começou a tremer.

Como que vai trazer pra cá, putrefato, tem nem dois anos, tem carne ainda.

Rafa vomitou.

Mas a mãe pediu.

A mãe surtou.

E se for verdade.

A mãe não é da Indonésia. Que se foda a Indonésia.

E se for verdade.

Que se foda.

Lynch tá se enforcando.

Rafa entrou em pânico.

 

A mãe pediu pra gente ficar pra jantar.

 

 

4.

Tive que ligar para minha namorada e dizer que não iríamos mais à casa de sua irmã. Que tinha acontecido algo. Que era melhor que não soubesse. Que não tinha certeza de quando ia voltar.

Ela expressou uma preocupação pouco convincente. Um ok que autorizava e desprezava tudo.

Jantamos eu, meus irmãos e a mãe no mesão da varanda, para ficar de olho em Lynch.

Luzes fracas e mariposas.

Ninguém falou.

Estranhamente, éramos felizes — ali. Assim. Solitários. Esquisitos.

Eu e Rafa resolvemos que era melhor pernoitar que desbravar o breu. A mãe insistiu para que Albertinho também ficasse, mas sua esposa, e suas filhas, e o cachorro…

Foi-se.

Voltaria de manhã.

Arturo ajeitou nossos antigos quartos.

Nada mais era nosso.

Adormeci pensando na vida que levávamos no Rio, de onde saíram todas aquelas caixas e quinquilharias que o cômodo agora estocava.

E tive um sonho.

Eu desenterrava todos os corpos do cemitério e não achava meu pai.

 

 

5.

O rabecão ia à frente.

Era uma manhã insensivelmente bonita.

Eu, Rafa e Arturo espremidos no banco de trás do Corsa branco que ainda não tivemos coragem de vender. Albertinho dirigia. A mãe no carona.

Os carros que passavam por nós buzinavam. Eu custei a perceber a simpatia. Foi Rafa que chamou a atenção.

 

— Por que tu não buzina de volta, Beto?

— Não precisa.

 

É de uma estupidez ímpar, a morte, e de uma candura infantil, o luto.

A rua que leva ao cemitério municipal de Teresópolis, pela rota tradicional, ainda é de paralelepípedo. Imaginei o caixão sacolejando dentro do carro e meu pai sacolejando dentro do caixão. Imaginei ele caindo e Albertinho tendo que frear bruscamente. Imaginei a mãe desistindo de enterrá-lo. Como é que a gente ia se virar sozinho?

Aquilo pareceu ainda menos natural na manhã de sexta-feira e completamente absurdo à noite, quando pegamos a rota dos vândalos, desta vez num Ford Focus que de forma alguma comportaria um caixão.

 

— Mas não precisa do caixão.

 

Arturo é que resolvera tudo, à época.

Na verdade, eu nunca nem soube onde enterraram meu pai. Só registrei a cor do céu, a inexpressividade da mãe, a expressividade exagerada dos outros e quão jovens eram os coveiros.

Qual a diferença da cova pro buraco?

Eu não sei.

Arturo nos contou, depois, que o cemitério estava a ponto de lotar.

Sem jazigos lá no alto, onde o deixamos. Só pedra, mato, terra vermelha e vira-latas.

Imaginei os cachorros roendo os ossos de uma avó muito querida.

 

Agora, Albertinho se encarregava de nos buscar, de separar os sacos de lixo, de estudar o trajeto e concluir que desviando pra Álvaro Paná pegávamos a Caingá direto pra dentro do cemitério.

Uma servitude tão determinada, tão convincente, que nem me dei conta de quando consenti com aquilo tudo.

Já havia voltado quando levantei para tomar café da manhã.

Preparava um pão com manteiga pro Rafa.

Quis abraçá-lo e puxar seus cabelos. Era, de nós quatro, o mais parecido com ele. No nome, nos modos, na formosura inesperada. Penso — que suas personalidades difiram tanto talvez seja uma escolha consciente. Talvez não difiram tanto assim.

Penso — não há resquício de maldade em meu irmão.

Penso — não há resquício de maldade em nenhum deles.

Contei aos dois de minhas aventuras oníricas, e depois a Arturo, enquanto eu fumava e ele varria folhas velhas pra fora da lavanderia.

Expressei minhas preocupações.

 

— Não cabe um caixão naquele carro.

— Mas não precisa do caixão.

— E a mãe?

— Vai ficar aqui.

— E o túmulo?

— Que tem?

— E as pás?

— Na casa do caseiro.

— E a polícia?

— Não tem polícia.

 

Queria que um deles cedesse e ao menos assumisse que ficamos todos malucos. Que com meu pai morreu a razão do mundo. Que já não sabemos lidar com a existência — a nossa e a dos outros — e que sabemos menos ainda sobre a inexistência.

 

Só que admiti-lo é admitir, também, que somos responsáveis por sua finitude.

 

Que o rabecão não subir até as covas novas,

que Arturo, Albertinho, Rafa, nosso contador e os rapazolas sepultureiros carregarem seu caixão por sabe-se lá quantos metros,

que rezarmos um Pai-Nosso e o entregarmos aos vermes é correto

e que tudo o mais é insensato.

 

 

6.

A figueira estava lá quando chegamos nós e estará lá quando chegarem outros — magnânima, deslumbrante e excessiva.

Abrigará novos morcegos,

proverá novos frutos,

guardará novas iniciais — ou as mesmas, para novos nomes —,

aceitará novos propósitos, ainda que ridículos,

e ignorará toda falta, porque enquanto não acaba continua, e continuará até que acabe.

Constante.

Completa.

Imperturbável.

Não lhe afetou a mãe fincar uma placa de jardim junto a si para delimitar o local onde relegaria o que quer que houvesse de meu pai a ser relegado à terra, e que nessa placa estivesse escrito, em uma fonte horrorosa, Aqui somos Todos Loucos Uns pelos Outros.

Não lhe afeta que desprezemos o figo.

Não lhe afeta que destruamos tudo a seu redor.

Tomamos sentido por essência porque é desesperador constatar que o sentido é dispensável,

que o que é natural é desprovido de sentido, mas não de essência,

e criá-los, impô-los e modificá-los é coisa nossa, mundana,

e quando nos esvairmos, todos, o que tiver de seguir, seguirá, e não deixará de ser porque não estamos.

 

Enquanto Albertinho dava uma  passada em casa para almoçar com seus dependentes, e eu preparava as batatas para o almoço dos que ficamos, tentei recordá-la como a figueira em que trepava na minha infância, mas isso há muito já não era — e nunca mais será.

À noite, de dentro do carro, tentei registrá-la como árvore — o que será para sempre —, mas tampouco.

Partimos, era uma lápide sem epitáfio.

 

 

7.

O caminho pela Álvaro Paná atravessa um musseque, nos atira num modesto aglomerado de terrenos inférteis — cujo potencial as construtoras ainda não descobriram, do contrário haveria meia dúzia de anúncios de novos condomínios — e, logo em seguida, Caingá, a avenida estreita de chão batido que corta o cemitério.

Não há luz ou viva alma ao longo desse trajeto.

Apesar disso, é como se nos convidassem a perturbar os mortos.

Sem vigias, sem portões, sem manifestações sobrenaturais.

Só seguir reto.

Nem ter posto Rafa ao volante foi um impeditivo.

E eu torcia para que nos descobrissem.

Para que nos perdêssemos.

Para que sofrêssemos um acidente e nunca chegássemos.

Por quê?

 

Paramos ao avistar um agrupamento de jazigos.

Arturo achou melhor deixar o carro ali mesmo.

 

— Rafa, você fica?

 

Rafa olhou pra mim.

 

— Se aparecer alguém tu diz que tá perdido.

 

Rafa olhou de volta pra Arturo.

 

— Qualquer coisa a gente te dá uma ligada. Põe pra vibrar.

 

Eu quis ficar com Rafa.

Albertinho me entregou os sacos, pegou uma pá e deu outra a Arturo.

Apertei o braço de Rafa, mas ele não entendeu.

Albertinho entendeu.

 

— Fica perto de mim, Ciça.

 

Ofereceu a mão macia e paterna.

 

— Vai à merda, Alberto.

 

Eu aceitei.

Confiamos que Arturo sabia do que devia saber.

Andava tão rápido que não havia como pensar outra coisa.

Eu não conseguia pensar em outra coisa.

Eu não queria pensar em outra coisa.

O futuro mais distante era o do próximo passo.

E o do próximo passo.

E o do próximo passo.

No supermercado, no shopping, na feira automobilística —

as mãos revezavam: ora a de Arturo, gorducha e calosa, ora a de Albertinho,

e embora me contrariasse, e fizesse birra, e lhes dirigisse as piores ofensas que minha criancice podia arquitetar,

não me desvencilhava —,

eu só precisava me preocupar com o passo seguinte, que fosse firme,

apesar do motivo e apesar do destino.

 

— A casa, Beto.

— Que que tem?

— É ali em cima.

 

Não só porque, se me desvencilhasse, talvez corresse para longe e nunca mais os encontrasse.

 

— É logo aqui.

 

Mas porque meu pai mandava não soltar.

 

— Aqui.

— Tem certeza?

— Aham.

 

A tal casa é um barraco encafuado no mato.

Lembrei dela também.

Havia uma moça parada à entrada quando subimos com o caixão. Que passasse suas horas de lazer escrutando o luto dos outros, era de se esperar. Que o escrutínio culminasse na expressão com a qual a flagrei, isso me perturba.

Não era de condescendência, comiseração ou constrangimento. Era como se tivesse acabado de testemunhar algo extraordinariamente ofensivo. Como se soubesse que, ano e pouco depois, eu tornaria a passar por ela, sacos plásticos, pás e dois irmãos comigo.

 

— Me dá teu celular.

 

Me perguntei se estaria ali, no escuro.

Quando descemos, não estava mais.

 

— Ciça, teu celular.

— Pra quê?

— A lanterna.

— Não sei se tem.

— Dá aqui.

 

Eu dei.

 

— Vem cá, Beto.

 

Só quando precisei largá-la é que percebi que apertava a mão de Albertinho.

 

— Ciça.

 

Eu não queria ir.

 

— Fica perto de mim.

 

Albertinho e Arturo tentaram combinar os fachos frouxos,

identificar os túmulos,

ler algarismos garranchudos em tocos de madeira.

Porque isso é o que há.

Porque isso é que é essencial.

 

— Aqui.

 

Cravou a pá no chão.

 

— Tem certeza?

— Tenho.

 

E se se enganasse?

 

— Como é que você sabe?

 

Me olhou feio.

 

— Eu conferi.

— E se não for?

 

E se Rafa tiver ido embora?

 

— Eu tô falando que é.

— Tem certeza?

— Sim, caralho.

 

E se a mãe estiver mentindo?

 

— Vai tomar no teu cu.

— Ciça.

— Eu tô falando que é aqui porque é, porra.

 

Pior: e se estiver errada?

 

— Tuco.

— Segura a luz e para de encher o meu saco.

 

Eram trinta e seis cruzes.

Trinta e seis túmulos paralelos.

Trinta e seis famílias sem dinheiro, paciência ou religião suficiente para um jazigo.

Setenta e dois pedaços de pau.

E quatro filhos regressantes.

 

E se Arturo só estivesse desesperado?

 

Devia ser mais difícil violar a morte —

ou mais fácil aceitar que ela pode ser violada.

Que depois, nada.

Aqui, lá, nada.

Mas pra acreditar nisso é preciso aceitar que como a morte, a vida:

que não importa o que se faça dela,

porque tudo o que vive só serve ao propósito da terra,

e que, pois, tudo é permitido, contanto cesse,

que só vale a existência porque deixamos de existir,

 

que sobre isso não se tem o menor controle.

 

Que você será pai, e então não será mais.

Que se uma mãe pedir que te desencavem, os filhos cavarão até te encontrar.

Que bastará a dúvida para que se justifique.

Que a certeza é artificial.

Que quando tentarem te trazer à tona, você cairá.

Que não dirão que estão errados — e eles estarão certos.

Que o que haverá de você, depois não haverá.

Que a noite seguirá sendo noite.

Que o amanhã virá amanhã.

E o seu sobrenome será esquecido.

E a sua linhagem será interrompida.

E o seu amor terá dissolvido.

E a sua tumba será arrombada.

E o seu caixão estará vazio.

 

***

imagem destacada: Casal Partiu/flickr

Autor

  • Nasceu no Rio de Janeiro, em 1993. Escreve por hobby e por profissão: o que é pago, não é assinado; o que é assinado, não é pago, e pode ser lido em https://medium.com/contemvoltinhas.

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Um comentário sobre “Ossada Perpétua

  1. Estou lendo “Antologia da literatura fantástica”… se Borges estivesse vivo e quisesse reeditar a obra, esse conto poderia tranquilamente figurar ao lado dos cânones do estilo. Parabéns, gostei bastante da história e da estética.

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