Nova edição de Minha Vida, de Leon Trotsky

A tradução que ora entregamos ao leitor tem por base a edição francesa da Gallimard de 1953. Na verdade, trata-se de tradução de Maurice Parijanine, realizada em 1930, ou seja, logo após o término da produção do livro por Leon Trotsky. A tradução de Parijanine foi revisada e modificada por Trotsky. O mesmo aconteceu com a tradução alemã, de Alexandra Ramm, também publicada em 1930, pela Editora Fischer. Valemo-nos pontualmente da edição alemã no processo de tradução. A tradução francesa, acreditamos, tem uma beleza plástica superior.

Minha Vida foi o primeiro livro escrito por Trotsky no exílio, na Turquia, em 1929. A proposta de uma autobiografia fora feita por um editor alemão (da Fischer Verlag), que foi a Constantinopla somente para isso. O editor teve de ser muito insistente e persuasivo, afinal, Trotsky nunca pensara em fazer uma obra desse tipo. Uma autobiografia, pensava ele, soava como algo pedante.

Trotsky, antes deste livro, escrevera toda sorte de textos: artigos de jornal, panfletos, livros de polêmica, de controvérsia teórica, de balanços de experiências práticas, de intervenção militar, de balanços de processos históricos — ou seja, sempre produziu com a preocupação voltada diretamente às intervenções sobre a realidade (seja enquanto proposição de ação, seja enquanto balanço). Apesar de estar sempre no olho do furacão, Trotsky nunca havia escrito propriamente sobre si. A necessidade de falar de si mesmo, de falar de seu lugar no centro dos acontecimentos, vexava-o. Por que então escreveu Minha Vida?

Trotsky escreveu Minha Vida por conta da necessidade de continuar, em condições novas, condições impostas a ele (as do exílio), a luta da oposição comunista contra o processo de burocratização da sociedade soviética. Portanto, Minha Vida, a rigor, não destoa de toda a produção de Trotsky: é sobretudo uma obra de combate pelo socialismo.

Nesta obra ver-se-á não apenas o transcorrer da vida de Trotsky, obviamente, mas seu cruzamento com importantes fatos (dos quais o maior é a Revolução Russa de 1917) e com importantes personalidades da época. Portanto, a obra nos fornece não apenas — como pode-se imaginar, à primeira vista — meandros e detalhes das polêmicas internas ao comunismo russo, ao poder de Estado soviético, mas também quadros e desenhos muito claros e ricos sobre todas as personalidades da social-democracia internacional do início do século XX. Note-se que, além da Rússia (Ucrânia, depois Rússia), Trotsky viveu na Bélgica, na Inglaterra, na França, depois novamente na Rússia, depois na Alemanha, na Áustria, novamente na França, teve uma pequena passagem pela Espanha, depois pelos EUA (Nova Iorque), ficou um tempo num campo de concentração no Canadá, e depois retornou, uma vez mais, à Rússia, para dirigir a revolução de 1917. Em seguida, como se sabe, foi deportado e exilado, e seu périplo continuou (depois da Turquia, morou clandestinamente na França, morou na Noruega e, por fim, no México, onde foi assassinado por um agente de Stalin).

Em praticamente todos esses lugares, Trotsky entrou em contato com as principais lideranças do movimento socialista de sua época. Em alguns lugares, onde esteve por mais tempo, desenvolveu laços mais profundos com algumas dessas personalidades, podendo dar delas grandes descrições. Auguste Bebel, Karl Kautsky, Jean Jaurès, Jules Guesde, Victor Adler, Franz Mehring, Otto Bauer, Rudolf Hilferding, Rosa Luxemburg, Karl Liebknecht, Georgi Plekhanov, Vladimir Lenin, Julius Martov (e sem contar, é claro, muitos outros coadjuvantes). Ou seja, o livro dá ao mesmo tempo um panorama muito vivo da IIª Internacional, na intensidade psicológica dos principais dirigentes — bem como fornece, nessa forma viva, a compreensão dos motivos de falência dessa internacional.

Com que acurácia Trotsky não descreve como sentia-se estranho entre as principais figuras da IIª internacional — sobretudo entre os austromarxistas — e percebia que entre eles e si próprio havia algum tipo de barreira intransponível? Era a diferença absoluta do método revolucionário de Marx e o método pedante dos acadêmicos “marxistas”. Lendo a correspondência de Marx e Engels, reconfortava-se, assegurando-se de que era feito da mesma massa que estes fundadores do marxismo, e não daqueles acadêmicos, “senhores doutores” do marxismo de Viena.

A mesma riqueza na descrição de personagens se dá, evidentemente, quanto às principais figuras da IIIª Internacional — Zinoviev, Kamenev, Dzerzhinsky, Bukharin, Radek, Ioffe e, como não poderia deixar de ser, Stalin. É muito curioso, aliás, compreender, na descrição, o longo processo de reflexão e vivência que permitiu a Trotsky, em meio a todos os acontecimentos, compreender o significado histórico do fenômeno social que depois ganhou o nome de stalinismo. A compreensão de um tal fenômeno histórico e social não se dá toda de uma só vez, rapidamente. É apenas no verão de 1925 que Trotsky percebe o verdadeiro significado histórico, mais profundo, de tudo aquilo que se passava. Trotsky acabara de ser afastado do Ministério da Guerra e estava doente, retirado numa região quente ao sul da Rússia, quase na fronteira com a Turquia. Devido à doença, tinha delírios. Entre esses delírios, teve finalmente o insight do significado histórico de tudo o que se passava. E, naquela época, numa conversa clandestina com Skliansky (capítulo 41), tomou conta da significação mais profunda:

– Responda-me: o que é Stalin? – perguntou-me Skliansky.

Skliansky conhecia Stalin suficientemente bem. Ele queria de mim uma definição dessa personalidade e a explicação de seu sucesso. Refleti.

– Stalin é a mais eminente mediocridade de nosso partido – respondi.

Pela primeira vez, durante essa conversa, essa definição apareceu-me em toda a sua significação, não apenas psicológica, mas também social. Pela expressão de Skliansky, notei que subitamente meu interlocutor percebera algo importante.

– Sabe – disse-me ele –, o que mais impressiona nesse último período é ver, em todos os domínios, surgir essa mediocridade orgulhosa e satisfeita de si mesma. E tudo isso encontra seu chefe em Stalin. De onde provém isso?

– É uma reação após a grande tensão social e psicológica dos primeiros anos da revolução. A contrarrevolução vitoriosa pode vir a ter seus grandes homens. Mas em sua primeira etapa, o Termidor tem necessidade dessas mediocridades que não enxergam um palmo diante do nariz. Sua força reside na cegueira política, como o cavalo de moinho, que julga andar para frente mas na verdade só gira em círculos. Um cavalo desses, sem antolhos, é incapaz de trabalhar.

Nessa conversa compreendi pela primeira vez, claramente, diria que até mesmo com uma certeza física, o problema do Termidor. Combinei com Skliansky que retomaríamos a conversa quando retornasse da América. Poucas semanas depois, recebi um telegrama informando que Skliansky, durante um passeio a barco, afogara-se num lago, na América.

Essa é apenas uma das passagens que mostram como um elemento absolutamente subjetivo confunde-se profundamente com um processo histórico. Certo elemento que, podemos dizer, é até irracional, inconsciente, de tão subjetivo, funde-se em determinado momento com a própria objetividade. Algumas das passagens mais belas nesse quesito, talvez as mais belas de todo o livro, são aquelas onde os bolcheviques estão prestas a tomar o poder ou já estão no poder. Nesses momentos, Trotsky chega a sentir, em toda a sua força ou plenitude, o que é o poder. Para os marxistas, é claro, o poder não é necessariamente um problema — como para os foucaultianos –, na exata medida em que o poder é uma pujante força de vida. O problema é o aprisionamento privado do poder. É isso, mais ou menos, que nos fazem refletir certas passagens como as seguintes, do capítulo 29:

Aqueles dias foram extraordinários, tanto na vida do país quanto em minha existência particular. A tensão das paixões sociais e das forças individuais alcançava o apogeu. As massas criavam uma época, e os dirigentes sentiam que seus passos caminhavam em uníssono como os passos da história. Naqueles dias eram tomadas decisões e ditadas ordens das quais dependia o destino de um povo para toda uma época histórica. E, no entanto, essas decisões eram pouco discutidas. Não me atrevo a dizer, porque não é verdade, que as refletíssemos e meditássemos devidamente antes de adotá-las. Improvisava-se, mas não por isso dava errado. A torrente dos acontecimentos tinha tamanha força e o que devia ser feito estava tão claro, que até decisões de maior responsabilidade eram tomadas de supetão, em meio à marcha dos acontecimentos, como algo evidente, com a mesma evidência com que eram aceitas e cumpridas. O caminho estava traçado de antemão. Era necessário apenas chamar cada tarefa por seu nome; não era necessário demonstrar nada nem lançar convocatórias. As massas compreendiam perfeitamente, sem dúvidas ou vacilações, o que a situação por si mesma lhes impunha. Os “dirigentes”, pressionados pelos acontecimentos, limitavam-se a dar expressão ao que respondia às necessidades das massas e às exigências da história.

O marxismo é a expressão consciente do processo histórico inconsciente. Mas esse processo “inconsciente” – inconsciente no sentido histórico-filosófico, não psicológico – só se funde com sua expressão consciente nos pontos culminantes, quando as massas, em um impulso de suas forças elementares, rompem os diques da rotina social e expressam vitoriosamente as necessidades mais profundas da evolução histórica. Em momentos como esses, a consciência teórica mais elevada da época funde-se com a ação direta das camadas mais profundas das massas oprimidas, as mais distantes de qualquer teoria. Essa união criadora do consciente e do inconsciente é o que costuma-se chamar de inspiração. As revoluções são momentos de inspiração arrebatadora da história.

Todo verdadeiro escritor tem momentos de criatividade em que alguém mais forte do que ele guia a sua própria mão. Todo verdadeiro orador tem momentos em que por sua boca fala algo mais poderoso do que o que brota dela em suas horas normais. É a “inspiração”, produto da mais alta tensão criadora de todas as forças. O inconsciente surge das ondas profundas em que vive e subordina-se ao trabalho consciente do pensamento; combina-se com ele em uma unidade superior.

Num determinado momento, todas as forças do espírito, postas em suprema tensão, apoderam-se da atividade individual, fundida com o movimento das massas. Tais foram os dias que viveram os “dirigentes” nas jornadas de outubro. As forças mais recônditas do organismo, seus instintos mais profundos, até esse fino sentido do olfato, herança de nossos antepassados animais, ergueram-se, fizeram saltar os diques da rotina psicológica e colocaram-se a serviço da revolução. Esses dois processos, o individual e o coletivo, repousavam na combinação do consciente com o inconsciente, do instinto, que é o motor da vontade, com as mais altas generalizações do espírito.

A fachada externa não tinha nada de patética – as pessoas iam e vinham, fatigadas, famintas, sem tomar banho, com os olhos inchados e as caras barbadas. E, depois de algum tempo, pergunte a qualquer um desses homens e será muito pouco o que poderá contar das horas e dos dias críticos.

Ou, ainda, passagens belas como esta do cap. 24:

Geralmente, no Circo Moderno, eu tomava a palavra à tarde, às vezes à noite. Meus ouvintes eram operários, soldados, laboriosas mães de família, adolescentes vindos da rua, os oprimidos, as camadas mais baixas da cidade. Não cabia mais uma agulha no lugar… As pessoas se amontoavam. Crianças sobre as costas dos pais. Bebês sugando o seio maternal. Ninguém fumava. As arquibancadas superiores ameaçavam cair, devido à sobrecarga. Para chegar à tribuna, tinha de passar por uma apertada trincheira de corpos, e às vezes era transportado por cima, pelos braços de todos. A atmosfera, pesada pela respiração e atenção, estourava repentinamente em gritos, urros apaixonados, como era comum no Circo Moderno. À minha volta, abaixo de mim, cotovelos estreitamente apertados, peitos, cabeças… Eu falava como do fundo de uma caverna calorosa de corpos humanos. Ao fazer um gesto um pouco mais amplo, sempre atingia alguém, e, num movimento de reconhecimento, a pessoa atingida me fazia compreender que não havia problema, que eu não deveria me interromper, que deveria continuar. Todo cansaço desaparecia na tensão elétrica da aglomeração humana. A massa queria saber, compreender, encontrar seu caminho. Às vezes, só de observar os lábios daquela massa fundida num só ser, podia-se captar todas as questões prementes. Então os argumentos concebidos de antemão, as palavras preparadas, cediam, retiravam-se sob a pressão autoritária das simpatias, e outras palavras saíam do umbral, outros argumentos poderosos, totalmente imprevistos pelo orador, mas necessários à massa. E então o próprio orador tinha a impressão de ouvir e seguir alguém que fala para si; de não poder seguir seu próprio pensamento, e sua única preocupação era a de que seu duplo, como um sonâmbulo, caísse no anfiteatro ao som de sua própria voz.

Note-se como Trotsky escrevia bem. Ele era mundialmente reconhecido, em sua época, como um grande literato; tinha uma enorme preocupação com todo o seu material de escritório para escrita, desde suas canetas, seus papeis, até com suas próprias mãos. Bernard Shaw chamou-o, com razão, de “o príncipe dos polemistas”. Basta ler o último capítulo do livro, “Planeta sem passaporte”, para compreender o motivo. Como se sabe, quando preso, Trotsky lia e relia os grandes romancistas e escritores. Da mesma forma, já depois da burocratização na URSS, quando ainda era membro do Comitê Central e do Bureau Político do Partido Comunista, lia romances franceses para passar o tempo das sessões-farsa montadas pela ascendente burocracia. Ainda assim, pensamos – e retomando as longas citações acima –, o que Trotsky entendia mais profundamente por arte era esse momento em que a própria revolução produzia abundantemente, como inspiração, tomando os indivíduos. Trotsky sabia – e citou isso muitas vezes – que a revolução é um acontecimento tão grandioso que não cabe em qualquer tipo de reprodução individual, nem na dos maiores e mais competentes artistas.

Enfim. Há neste livro momentos de profundidade em reflexão, como os citados. Há os momentos de acurácia filosófica — como a polêmica com Victor Serge e Clara Zetkin a respeito do humanismo dos anarquistas —, há momentos de puro heroísmo — como a fundação do Exército Vermelho, o primeiro mês de experiências miltares em Sviiajsk, a defesa heroica de Petrogrado — que coube sobretudo a Trotsky — e há belos momentos, também, de demonstração de afeto e amor (momentos plenos de romantismo, como passagens de reencontros com Natalia Sedov, onde Trotsky revela seu talento individual de escritor dentro da tradição ocidental).

Minha Vida é uma obra fenomenal. Talvez seja a mais importante biografia existente. Ainda assim, e apesar do nome, a vida de Trotsky não acabe em 1929. O dirigente político russo vive ainda mais onze anos, até ser assassinado por um agente de Stalin. Ele vivencia o assassinado (ou a condução à morte) de todos os seus filhos. De sua estirpe, restou apenas seu neto, vivo ainda hoje, Esteban Volkov. Enfim, a vida de Trotsky não acaba com essa obra. Após 1929, ele se deparará ainda com tarefas monumentais. Como se sabe, em 1933, com a ascensão do nazismo e a completa falência da III Internacional, Trotsky defende e organiza a criação da IV Internacional, a tarefa, segundo ele, mais importante de sua vida, mesmo mais importante do que a de 1917.

É ao dirigente da insurreição de outubro de 1917, ao criador do Exército Vermelho e fundador da IV Internacional que prestamos homenagem com esta publicação. Devido à sua importância para a históra do século XX, o livro deve ser lido mesmo por aqueles que não compartilham de seus pensamentos. A Editora Sundermann, agora, 2017, realiza um importante trabalho para circular obras de Trotsky hoje de difícil acesso.

Autor

Compartilhe esta postagem:

Participe da conversa