Espaços Silenciosos: a Poética de Denise Emmer

Reminiscência. Essa talvez seja a palavra que melhor define o novo livro de Denise Emmer, Poema Cenário e outros silêncios. Escritora de produção extensa e musicista de carreira, Denise inicia e conclui sua obra com rememorações do seu passado e questionamentos sobre si, desenvolvendo, sobre elementos do seu cotidiano — como o violoncelo (instrumento que toca na Orquestra Rio Camarata) e o montanhismo (esporte que pratica) — reflexões de profundo lirismo e musicalidade.

A representação de um eu fragmentado marca a lírica da poeta, seja em versos de profunda reserva, seja noutros de marcada metalinguagem. Revisitar o passado é, em todos os poemas do livro, além de questionar-se, questionar o próprio fazer poético enquanto recurso para tais indagações.

Ainda mais, autora e eu-lírico se confundem em uma só voz. A obra convida o leitor a passear por um conjunto de imagens verbais tão precisas tanto em uma leitura esparsa quanto em uma leitura contínua. São poemas sui generis, simultaneamente independentes, episódicos, e partícipes, integrantes ordenadamente a um único organismo, o livro.

Falta-me a crença convicta na religião para sabê-los em alguma eternidade feliz. Entretanto, ao transformar em poesia os entes que amava e que partiram, revivo-os e os reencontro de alguma forma em meus versos.

A musicalidade, por sua vez, fica evidente quando se consideram as mudanças de estrofes, nos quais os espaços amplificam a voz do eu-lírico ao mesmo tempo em que potencializam o significado dos versos, como se fossem, verdadeiramente, a “caminhada” entre uma cena e outra — ou entre as reminiscências. O eu-lírico caminha por suas memórias, e cada espaço da página assemelha-se a uma moldura que envolve a cena relembrada. Essa fluidez é notada, especialmente, em poemas como “Assim falam as tormentas”, em que vamos acompanhando o percurso do eu-lírico por suas lembranças e pela cronologia delas, e as metáforas marítimas ganham o sentido do próprio correr da vida (e da lírica):

Meu navio saído de um livro
Eis que zarpou foragido
Ao altíssimo mar das almas

Adeus varandas amenas
De minhas certezas plenas
Vou para onde me chamam

O Contemporâneo

A evocação do passado nos possibilita uma interpretação da poesia de Emmer como presentificação de suas memórias. O eu-lírico faz delas imagens atuais, de forma que as lacunas entre um poema e outro bem podem ser as “luzes” do presente (na medida da ideia de contemporaneidade no filósofo Giorgio Agamben: “(…) uma singular relação com o próprio tempo que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias”). O que interessa nesse livro é o passado que ainda se faz vivo no agora, o passado que, inacabado, ainda se mostra em devir:

Estou sentada sobre um penhasco de vidro
Aguardando teu adeus que nunca houve

A imagem de um passado que “nunca houve” é pungente. Trata-se de uma uma interpretação dos “silêncios”, o que em diversos momentos a autora mostra ser o objeto central de suas evocações. A poesia como cenário, ao mesmo tempo em que é silêncio, torna-se a forma como a poeta acessa e interpreta suas memórias, e como ela as percebe em seu presente. Esse embate entre os tempos vai caminhando e se desenvolvendo ao longo da obra enquanto uma autointerpretação, um embate da poeta que se procura.

Literatura feminista, não creio, mas, feminina, sim, já que somos em sentimentos e hormônios substancialmente diferentes. Como poderia um homem escrever com igual verdade sobre a experiência do amor, da maternidade?

Perceber a si mesmo culmina em uma retomada das origens, mas é igualmente assumir a lida de compreender os diversos hiatos que há nessa retomada. Nesse sentido está o poema “Denise é o silêncio”:

Mas permaneces parado
Intacto olhar de planície
Silêncio. Nunca me vistes
És o estranho antigo.

Não Me Conheço

Um momento crucial da obra, sem dúvida o mais memorável, é o poema “O Pai”, no qual Denise reclama a figura paterna à sua poesia. Os profundos diálogos do eu-lírico com a memória e influência concreta do pai falecido são construções verbais de grande força, e inevitavelmente estabelecem laços com os melhores versos de Sylvia Plath e Dylan Thomas:

Se não dizia nada
Apenas escrevia
Ele nada sabia
De mim e meu enigma.

Ora tentando compreender sua relação com o pai, ora tentando entender a si mesma, a voz do poema prossegue com suas lembranças, até encerrar magnificamente pela sentença, que abarca a obra: “Não me conheço”.

Na poesia de Denise, a força virtualmente viva do passado opera com vigor sobre o presente; a identidade do ser é uma construção em continuum, no qual a efemeridade e a transfiguração são as únicas certezas. Essa poética recôndita, com ecos de Cecília Meirelles e Florbela Espanca, faz de Poema Cenário e Outros Silêncios um dos grandes livros de poesia lançados em 2015.

Leia abaixo uma entrevista com a autora.

Denise, além de escritora, você é formada em física, é violoncelista, cantora, compositora — e ainda pratica montanhismo. Como você concilia essas atividades? E como elas contribuem para a sua escrita?

imagem: Divulgação

Vamos por partes. Graduei-me em física aos 22 anos e trabalhei por um pequeno período em energia solar, enquanto cursava o primeiro ano de astronomia — meu real desejo. Quando a música e a poesia se impuseram com mais força, abandonei a ciência para dedicar-me exclusivamente à minha vocação, apesar de ter tentando fugir dela embrenhando-me nos cálculos e infinitos. Portanto, há muito que não sou física, apesar de admitir que essa formação me influencia.

A música e a poesia estão interligadas e cada qual surge a seu tempo. Quando componho, não escrevo, e vice-versa. Os períodos de poesia são maiores que os de composição. Cantora, não sou. Apenas interpreto minhas músicas. Violoncelista, sim. O cello foi uma consequência natural e diria que ele é alguma voz que não alcanço. E montanhista, bem… trata-se apenas de um lazer saudável e espiritual que pratico nos fins de semana, através das trilhas e pedras aonde encontro a paz e a mim mesma. Esse leque de vivências refletem na poesia que escrevo, pois sou tudo isso e mais um pouco, a considerar o circunstancial e a rotação do mundo.

Mas, em resumo: sou poeta.

Em sua poesia, é possível observar uma busca do eu-lírico por um passado que, embora esteja acabado, se faz virtualmente decisivo para uma vivência do presente. Como você percebe essa relação entre o tempo, a memória e a criação literária?

A poesia mora em algum lugar do inconsciente onde a linguagem é a morada do ser. Nesta morada está a memória antiga, envolta numa aura penumbrosa da qual o acesso por nós é esquecido diante do fazer cotidiano. Em algum momento, em que não nos é dada a escolha, esse passado revive e aflora em linguagem poética. A criação literária consiste nesse espaço-tempo em que está o mistério, ou seja, na ponte entre o longínquo da alma e a poesia. Talvez por isso a chamem de inspiração. Eu fico com a interrogação.

Você dedica alguns de seus poemas a pessoas já falecidas, como seus pais ou o poeta Ivan Junqueira. Como você vivencia a morte? Como você percebe a morte e a ausência na poesia?

Não lido bem com a ideia da morte. A começar pela infância, quando perdi meu irmão caçula, Marcos. Creio que essa perda precoce tenha me marcado de forma irremediável, nas tristes reminiscências das idas ao cemitério acompanhando minha mãe ao túmulo de meu irmão. Poesia não é desabafo, tampouco o transbordamento das emoções. Porém, enfatizando a resposta acima, as perdas pelas quais passamos refugiam-se na memória e por lá permanecem por um tempo que não controlamos. Assim, os meus mortos tornam-se alguns dos meus temas. Não sei se para o bem ou para o mal, pois a cada poema que escrevo, voltam-me as lembranças e revivo aqueles instantes mais penosos. Falta-me a crença convicta na religião para sabê-los em alguma eternidade feliz. Entretanto, ao transformar em poesia os entes que amava e que partiram, revivo-os e os reencontro de alguma forma em meus versos.

A temática feminina também é muito forte em sua obra, e as diversas identidades que uma mulher assume (esposa, filha, mãe, profissional) são tratadas com especial argúcia. Quais são as relações que você compreende entre a literatura e o feminino/feminismo? Existe uma literatura feminina/feminista?

Feminista, não creio, mas, feminina, sim, já que somos em sentimentos e hormônios substancialmente diferentes. Como poderia um homem escrever com igual verdade sobre a experiência do amor, da maternidade — o caso do meu poema “A Lâmpada Mágica” — no qual travo uma conversa com o filho no ventre? Ou mesmo na dura temática da mãe que perde um filho, aquele ser que maturou em seu ventre e se fez/faz parte das entranhas — e aí cito outro poema “Mulheres que enterram filhos”. Por mais que os temas se aproximem, tal como um romance policial, uma biografia ou uma aventura, a forma de contar é distintamente diferente, uma vez que as vivências e visões se distinguem na essência. Porém, uma literatura radicalizada e de combate fez-se necessária para romper tabus e ganhar os espaços, na maioria preenchidos por escritores. Se hoje ainda lutamos para alcançar a plena igualdade de direitos, imagino a vitória de Cecília Meireles em 1938 ao ser a primeira mulher a ganhar o Prêmio Olavo Bilac da Academia Brasileira de Letras com seu belíssimo livro Viagem, quando grande parte dos acadêmicos não a queriam premiada!

Outro aspecto que me chamou bastante atenção foram as diversas referências à espaços físicos naturais, assim como à cidade do Rio de Janeiro. Como você vê essa relação entre esses espaços e a literatura? Qual é a mensura deles para sua obra?

Eu nasci e moro no Rio de Janeiro cercada de natureza, apesar das mazelas sociais que a cada dia mais nos chocam e nos aprisionam. O meu olhar de poeta não poderia ficar indiferente às montanhas que escalo ou simplesmente vislumbro de qualquer ângulo da cidade. Igualmente o mar e as florestas me encantam e atiçam minha imaginação. Não é de hoje que se “canta” a natureza. O romântico Gonçalves Dias o fez na “Canção do Exílio” no século XIX, e Vinicius de Moraes mais recentemente com imensa beleza e lirismo. A percepção da poesia vai além dos espaços físicos, ela os recria e os reinventa sob um outro olhar. Como se revelasse um mundo jamais visitado. Em minha obra, ela está presente não somente na temática específica, também perpassa como imagens e metáforas os poemas em que falo do amor, da morte, da fugacidade do tempo, solidão e silêncio .

Como você percebe a literatura brasileira atual? Quais são os autores recentes que você mais admira?

Vejo como um leque de possibilidades. Ao contrário de poucas décadas atrás, quando ditavam as escolas literárias e enquadramentos estilísticos, hoje o caminho é a liberdade da criação, sem amarras ou engajamentos. Se por um lado ganhamos com a ausência de cobranças a filiações, por outro, nos dispomos soltos, sem confrades ou referências diretas com quem possamos compartilhar nossas criações. Também, o advento da internet serviu para que essa “liberdade” fosse viável, o que possibilitou o ingresso de várias vozes com igualdade de chances para a publicação virtual. Assim, visito blogs e sites, cujos textos são inesperadamente bons e outros nem tanto, onde há uma visível falta de noção, ou mesmo nenhum compromisso com a linguagem. Creio que o livro físico ainda seja o objetivo dos autores e que resista por um tempo indeterminado. Poderia citar os diletos poetas Alexei Bueno e Bruno Tolentino, como alguns dos representantes da atual poesia brasileira, mas igualmente reservo o espaço final da entrevista relembrando o poeta, romancista, pintor, autor de Todos os cachorros são azuis, Rodrigo Souza Leão, de vida tão breve, mas que nos deixou uma promessa de literatura e espanto.

Autor

  • Autor dos livros de poesia Nada (Patuá, 2019) e Hinário Ateu (Urutau, 2020). Já publicou em revistas como Mallarmargens, 7Faces, Zunái e publica com regularidade nas revistas Úrsula e Subversa.

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