De como morre a infância, ou: Ponte para Terabítia

Li na internet que Ponte para Terabítia era ‘uma fantasia com bom senso’. Pelo que me parece, isso para o autor do texto era um elogio. Ele gosta do fato de que o filme não é centrado em efeitos especiais e cenas espantosas, mas na amizade entre os personagens, no desenvolvimento pessoal deles. A história é a seguinte: enquanto lidam com dilemas de costume na escola (você sabe, os valentões, os alunos que humilham os outros), dois personagens, um menino e uma menina, criam um mundo particular: Terabítia. O filme tem o mesmo objetivo de Peixe Grande, do Tim Burton: a defesa da imaginação. Seria a nossa escapatória sempre possível, nosso mecanismo portátil pra embelezar o mundo.

Porém, da forma como a história é contada, esse objetivo é traído. A imaginação é posta como isso mesmo: um mecanismo que crie beleza. De acordo com o ponto de vista, (no Peixe Grande, por exemplo, um dos personagens tem a ideia que segue) essa máquina é em verdade uma produtora de falsidades em série. A pessoa falsificaria seu mundo, pois não pode suportá-lo. Ponte para Terabítia é sim uma ‘fantasia com bom senso’, mas a união desses dois termos é um absurdo, um paradoxo. Fantasia com bom senso é como carnaval com prudência, fé com interesse, crianças com maturidade de adulto. O mundo de Terabítia não é um lugar fantástico no qual gostaríamos de viajar. É um símbolo.

Somente um símbolo, somente uma metáfora. Não ocorrem duas histórias paralelas no filme, como dito, a da escola e a do mundo fantasioso, na verdade são a mesma coisa. A segunda é apenas uma outra forma de representar a primeira. Assim, alunos malvados se tornam trolls, um pai rígido e distante se torna uma sombra a correr e perseguir. Perceba que quando o filme traduz tudo o que foi imaginado em termos de ‘realidade’, o que se faz é determinar que toda criação é uma maquiagem dessa realidade. A sequência final comprova essa ideia. A morte da personagem libertadora, a inconstância dos escritores, que novamente se mudam, novamente não se enraízam, o pai que, depois de uma prova de responsabilidade do filho, finalmente se aproxima.

E, principalmente, a frase de certa professora que nos foi apresentada como má e depois se torna santificada quando sua malvadeza é explicada por uma tristeza antiga. Falaram para ela, quando seu marido morreu, para que não chorasse, para que esquecesse. Mas ela não queria esquecer. Ao mesmo tempo, a outra professora, representante de ideias de liberdade, arte, mente aberta, sofre certo desprezo, por qualquer relação indireta com um certo acidente supracitado mas não explicado. Assim, é a defesa definitiva do ‘enfrente a realidade’ contra o ’embeleze a realidade’. A fantasia é só um meio passageiro e bem infantil de entender as coisas e seguir adiante. Quando possível, largue.

Mesmo o modo como os personagens vencem os desafios no ‘mundo real’ é um tipo de traição do filme contra o filme. Quando atraiçoam uma vilã e conseguem uma vingança, eles afirmam a mesma ideia contra a qual lutavam: antes, a vilã humilhava; agora, com uma humilhação maior e mais cruel, eles vencem. A mesma coisa com o outro ser ruim do filme, um pentelho que senta atrás do protagonista: leva um soco no nariz e está tudo resolvido. Ao pai do garoto, naquele momento de prova de responsabilidade que citei, é tratado com a mesma indiferença com que agiu durante o filme. A realidade seria força contra força. Uma visão que me parece genuinamente americana.

No fim, Terabítia só existe como um tributo a uma menina menor e mais inocente. Se as Crônicas de Narnia foram a inspiração da autora da história, ela não pegou a ideia. C.S. Lewis criou em Narnia um mundo mais belo e mais amplo, preferível ao nosso. Muitos personagens ao longo dos livros se vão e não mais voltam à terra narniana, mas não porque a maturidade sobrepõe à fantasia, e sim porque é fora de lá que devem aprender a acalentar essa fantasia. Narnia é um objetivo, e isso torna esses livros de Lewis muito maiores do que o Ponte; não nos adaptamos à realidade – criamos e esperamos por algo melhor.

 

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

Compartilhe esta postagem:

Participe da conversa