A humanidade sofre? Eu sofro com ela

Na primeira cena de Hell, peça dirigida por Hector Babenco — diretor de Pixote, a lei do mais fracoBrincando nos Campos do Senhor e Carandiru — vemos a protagonista trocar de roupas, frenética, como se sucessivamente trocasse de alma. O olhar à frente, na direção da plateia, como quem fita um espelho. Ela se prepara para sair, e é em nós que se reflete para conferir se soa bem a combinação que pôs. Monologa. Rica, vazia, intensa, autodestrutiva e melancólica, no entanto, ainda assim, exultante. Discursa sobre nós com desprezo. Pobre ou classe média, a mesma necessidade de trabalho que ela não tem, a sensação de melhora por ganhos que lhe parecem insignificantes. A elite inalcançável. Cujos filhos entopem o nariz de cocaína e consomem-se em orgia nas noites francesas.

Lolita Pille é uma dessas filhas, herdeiras perdidas da aristocracia, e é autora de Hell, livro que serve de base à montagem de Babenco. Bárbara Paz (Hell) e Ricardo Tozzi (Andrea) formam o elenco. A peça é o relato em primeira pessoa de uma rotina de drogas, festas, sexo, compras, grifes, inveja, rancor e paixão. Trata-se também de uma história de amor, nos limites em que o amor é possível nessas condições. Retrato negativo do glamourHell fascina pelos não-limites da riqueza e do excesso, e através dessa crônica violenta permite ver o quanto fragilidade e força se misturam nesses indivíduos no topo do mundo, e como a potência se mescla a uma fraqueza original da classe a que pertencem. ‘Somos um elétron sem núcleo’, escreve Pille. Assim sendo, o que ela vê nesse reflexo que somos nós?

Adoração

Para responder a essa pergunta, talvez seja preciso analisar três sequências fundamentais do espetáculo, que poderíamos resumir em vertigemamor e humilhação. Temos a primeira na noite parisiense. As luzes se apagam deixando Hell ao fundo do palco. A música se eleva, e de súbito os refletores iluminam a protagonista no centro e à frente. As luzes se comportam como flashes de câmera, curtas, intermitentes, a atriz é congelada em uma pose, logo outra, e nos intervalos narra aceleradamente a vida noturna à sua volta. Um conflito de roupas, um exagero de droga, bebida e sexo, dinheiro e prazer, o quanto e quando querem. No intervalo da festa ininterrupta, Hell segue ao quarto de um namorado eventual, transa enquanto vê as camisinhas usadas espalhadas pelo chão, depois ele a leva em casa.

Tem um aborto marcado para a manhã seguinte. Outra troca de roupas no palco, enquanto a personagem especifica cada item pela sua marca. Aborta, sem mais. Segue à ronda das lojas de grife de Paris. Gasta em trinta minutos o equivalente a meses do aluguel de uma família de classe média. Chega a uma vitrine de artigos infantis. Chora sem compreender o por quê. Outra troca de roupas no palco. Mais uma noite. Estão todos sempre lá. Deixando-se ver. Vendo. Falam sobre um certo Andrea. Que levou uma das garotas a seu quarto, quis o sexo mais intenso, algemou-a e a prendeu na despensa, antes da transa saiu para comprar algo, se encontrou com os amigos, acabou em uma viagem de vários dias. A amante foi solta pela empregada que a descobriu ao raiar de outro dia.

O que você faria se tivesse a vida garantida? O que faria se pudesse fazer qualquer coisa? A rotina de Hell está além da tentativa de controle e da preocupação com consequências. Mais do que isso, se satisfaz como quer com tanta freqüência que nenhum ato é mesmo especial, nesta sucessão de vertigens os atos não são extremos, são só atos. Talvez ela esteja certa no início da peça, somos algo inferiores, e não nos revoltamos contra isso porque o que de fato queríamos era ter o que ela possui. Na plateia, quando se arruma, o que ela vê é adoração. E não só, mas inveja, despeito, aprovação e vontade de ser aceito.

Identificação

Esse é o atrativo de revistas como Caras. Mas essa resposta não é suficiente. Apesar dessas distâncias de classe e possibilidade, ela ainda sente tristeza, falta de sentido; e após o aborto chora em frente à artigos infantis. A deficiência de afeto já é flagrante nas cenas anteriores, e teremos outro exemplo na relação só funcional, mecânica, que Hell tem com seus pais. O encontro fundamental entre ela e Andrea muda os termos da questão.

Ele, o homem ‘mais sedutor de Paris’ e um canalha, como vimos. Ela, com personalidade e beleza bastantes para atraí-lo. É sintomático que, depois do primeiro contato, eles passem a uma espécie de namoro em que se contém, em vários sentidos. Sem sexo imediato, excesso ou violência. É quase um cortejo à moda antiga. Ainda mais significativa é a primeira cena de sexo (ou, mais precisamente, amor físico) entre os dois: um em cada ponta do palco, eles caminham na horizontal, devagar, um na direção do outro. Despem uma peça por vez, largam as vestes atrás de si. Se, como este texto se esforçou por caracterizar, as roupas são como identidades, nesse momento os personagens se reduzem ao corpo seminu; purificam-se, é possível dizer? Abraçam-se enfim no centro do palco. Deitam-se, à meia luz.

Esse trecho dá à peça a possibilidade de identificação. A carência insuspeita e, depois, uma relação de amor ideal como de conto de fada: o par se retira da noite infinda, se isola da sociedade, passa meses vivendo apenas para si e por si. Isto é, mesmo superior e cheia de desprezo nos eventos anteriores, no fim das contas, ela é humana de forma comum e apaixonada; essa fraqueza e/ou essa ternura inerentes parece ser compartilhada por ambas as classes. De um e do outro lado daquele espelho inicial, o mesmo denominador comum.

‘Bêbada, drogada, Hell encontra Andrea, agarra num golpe seu pênis; ele a puxa, se beijam, ela a vira de costas. Quase de quatro, joelhos no chão’

Catarse

No entanto, a sequência de que acabamos de tratar tem um pé no clichê e o que segue a isso nos leva a outro lugar comum que tem uma função implícita: o ajuste de contas. Quando os dois namorados saem do isolamento, basta uma noite para destruir o sonho. Cenas tensas de cocaína e obsessão se seguem, desandando em uma cena de sexo em meio ao clube repleto. Bêbada, drogada, Hell encontra Andrea, agarra num golpe seu pênis; ele a puxa, se beijam, ela a vira de costas. Quase de quatro, joelhos no chão — a atriz narra a transa que não vemos nessas cenas fixas, as pessoas, o que veio depois. Isso é de alguma forma o outro extremo da primeira cena, é físico, mas não é o que chamaríamos idealmente de amor. O relacionamento acaba e outros fatos aprofundam a perda e a corrosão de Andrea e Hell no pós-paixão. Essa queda segue até a tragédia final.

O sofrimento definitivo do personagem que tem prazer ou é liberto demais é típico, e pode ser encontrado com facilidade no cinema americano, principalmente o clássico. Em Hell, o recurso funciona no sentido de empatar o jogo entre o desprezo de classe da protagonista e o nosso despeito: ela tem tudo, mas é irremediavelmente perdida por isso. De certo modo, há algo de conservador nessa afirmação, e esse fator sutil impede qualquer tipo de revolta e por isso acaba por ter um efeito político, sugerindo um equilíbrio entre prazer e dor nas classes alta e baixa. O equilíbrio existe? O comentário da peça sobre o tema é a ironia.

Depois de termos passado pela vertigem e pelo amor, chegamos à humilhação. Hell chega a um estado de degradação maior e termina saindo com um michê. Ela não permite que toque o seu corpo; monta sobre o homem e controla a relação sexual sozinha. Depois lhe diz que a coma por trás. A cena que ocorre então é extremamente ridícula e forte precisamente por isso. Com os joelhos curvados, movendo os quadris e simulando o sexo anal, Hell conversa enquanto ele a fode, as luzes jogando sua silhueta patética num e noutro lado do palco. Fala mais e mais, verborragicamente, termina o coito, ela o expulsa. Na escala de cenas de sexo, esta é o ponto mais baixo: sem vestígio de carinho e até mesmo sem qualquer espécie de prazer; só a pessoa humilhada (por si mesma) e autodestrutiva.

No instante seguinte, outra troca de roupas no palco. Hell está tão cínica e ferida quanto no início, as consequências de tudo o que aconteceu perdem força e sentido, a dor é esvaziada. Ela diz: ‘A humanidade sofre? Eu sofro com ela’. Mas que tipo de sofrimento? No espelho, ela vê adoração por seu sucesso irrestrito, identificação por sua vida também humana e uma satisfação perversa quando enfim fracassa. Porém, ainda esse fracasso não tem significado: sua riqueza sobrevive, sua potência sobrevive, Hell sobrevive. Acima de nós.

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

Compartilhe esta postagem:

Participe da conversa