Consciência Negra

Não sei o que geralmente e exatamente se quer dizer com ‘consciência negra’, conceito comemorado ao longo deste mês de novembro e com mais ênfase no último dia 20, que teria sido, em 1695, o da morte de Zumbi, líder do Quilombo de Palmares. Mas tenho certeza de que o que existe de verdadeiro e forte neste conceito pode ser extraído de algumas músicas que escolhi para marcar a data. Você pode ir ouvindo com o player aqui ao lado enquanto eu faço uns poucos comentários. Lá pelo fim, quem sabe não chegamos a uma conclusão do que é que deve ser lembrado nessa data.

A minha primeira escolha é antológica e comum. Navio Negreiro, poema de Castro Alves, é bastante conhecido; aqui, um trecho nos aparece musicado por Caetano Veloso. É a tortura dos navios de escravos, a festa animalesca, o autoritarismo e violência dos senhores. Assim:

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro… ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!…

Como se continuássemos a narração da mesma história de barbárie, Choro Novo na Senzala, de Janaína Reis, traz, com simplicidade e esperança, a história de uma criança que nasce. A inversão de sentimentos, da crueza para alguma alegria, se dá logo no título: ‘choro’ remete à tristeza, mas aqui temos um nascimento.

Escutei um choro na senzala
E um batuque de reza aos orixás
Chegou mais um guerreiro na terra
Chegou mais um filho de oxalá
Tem a pele de noite sem lua
Tem olhar com brilho de luar
Tem a alma tão branca e tão pura
Como a cor da espuma do mar

As alusões da música à futura profissão do menino e ao fato de que ele é um ‘cidadão brasileiro’ indicam o teor psicológico subliminar a toda essa narração de esperança e simpleza. Se pensarmos também que todas essas expectativas seriam só absurdas no contexto das senzalas originais, podemos fazer duas hipóteses: a música demonstra, com essa denúncia de sonhos castrados, a mais potente violência da escravidão; ou a música usa como metáfora a senzala para definir os dias de hoje. Ainda. Será mesmo? Voltaremos a isso.

Na sequência, você ouve três trechos da gravação do musical Arena conta Zumbi, de 1965, escrito por Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal, com música de Edu Lobo, direção de Augusto Boal e direção musical de Carlos Castilho. A peça dialoga principalmente com o cenário político brasileiro da época, à ditadura recém-nascida. É a história mais lembrada pelo Dia da Consciência Negra: a liderança de Zumbi, a construção de Palmares, etc. Destaco a definição de liberdade não como descanso, mas como resultado de luta e determinação de ainda mais luta. Se a senzala moderna sugerida apenas pela última música existir, essa luta ainda tem sentido e justeza.

Segundo os versos do Racionais MCs, certamente ainda tem. Em Negro Drama, todo o conteúdo político apenas suposto em Choro Novo na Senzala é direto, corrosivo e violento.

Já é cultural, histórias, registros, escritos,
Não é conto, nem fabula, lenda ou mito,
Não foi sempre dito, que preto não tem vez?

O Racionais vai tratar do tipo de opressão econômica e social de raízes antigas em várias músicas, mas esta em particular releva o ‘negro’ e se refere ao ‘senhor do Engenho’. Senhor do Engenho, eu sei quem é você. Isso hoje. O ideário explicita que nada mudou.

Por outro lado, a ideia que, na minha opinião, mais transparece nessa comemoração é a que está em Samba da Benção, de Vinicius de Moraes, aqui interpretado por Bebel Gilberto.

Porque o samba nasceu lá na Bahia
E se hoje ele é branco na poesia
Se hoje ele é branco na poesia
Ele é negro demais no coração

Que nos leva a pensar em uma irmandade entre todos nós que existiria através da cultura, o que é uma ideia doce e às vezes verdadeira, mas acaba se tornando uma ideologia que esconde muita coisa.

Qualquer conceito de ‘consciência negra’ comemorado neste mês deve levar em consideração toda essa complexidade. Ter todas esses ideias acima em mente. É a opressão permitida pelo dinheiro, comércio, ideologia e religião; é a esperança castrada logo no primeiro choro; é a liberdade que só se mantém com esforço interminável; é a senzala moderna, ampla e sem grades — opressão econômica e ideológica ainda; e é também a cultura que nos aproxima em antropofagia, como quis Oswald.

Que acham? Não é esse o conceito exato, uma dialética de conceitos?

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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