Wall-e = We All

imagem: cena de Wall-e

Wall-e, filme Pixar/Disney de que você já deve ter ouvido falar, trata da história de um robozinho em uma terra devastada por nós mesmos, seres humanos, que a entupimos de lixo até não sobrar espaço para nada, nem para ar que não fosse tóxico. O cenário é bem plausível: lá pelos idos de 2110 abandonaríamos a terra por falta de condições de vida, e deixaríamos aqui uma série de robôs compactadores de detritos, que limpariam o nosso descaso enquanto passávamos um tempo confortável no vácuo espacial. Todos os robôs ao longo de 700 anos deixaram de funcionar, só sobrou Wall-e, sozinho e diligente. Tem um único amigo: uma barata. E suas coleções de bugigangas.

Daqui adiante, este texto contém spoilers. O enredo segue com a chegada de outro robô à Terra, de traços e voz feminina, por quem Wall-e se apaixona. Ela procura por algo no planeta para levar às colônias humanas. A nave que a traz é totalmente automatizada; se vai logo depois de deixá-la. A robô fica por algum tempo, se torna amiga de Wall-e. Em algum momento, encontra o que precisa; pouco depois, a nave vem buscá-la. Sem poder perdê-la, nosso protagonista se agarra na nave e é levado através do espaço, em direção aos humanos que restaram. Lá, ele desencadeará o fim do exílio.

No entanto, Wall-e não funciona só nesse registro central, o que o faz mais complexo do que possa parecer. Há temas sendo trabalhados em paralelo. Os que notei: referências à história do cinema que potencializam a força de algumas cenas; a emulação da história do desenvolvimento humano, desde seu início; o uso de simbolismos; e a releitura de uma série de temas bíblicos. A partir daqui, vou contando a estória enquanto exponho o uso destes enredos menos visíveis.

O simbolismo já começa pelo fato do único amigo de Wall-e ser a barata. Tanto o robô quando esse inseto desgraçado cumprem a mesma função: tratam detritos. O How Stuff Works diz: “Elas ajudam a decompor restos orgânicos; elas adicionam nutrientes ao solo e também são fonte de comida para pequenos répteis e mamíferos: são parte importante de muitos ecossistemas”. É só adequado que os dois estejam juntos. Depois, a chegada da robô, inicia a leitura religiosa: seu nome é Eva. Wall-e, o único habitante racional de um mundo vasto e solitário, e eis que chega sua companheira. Se tomarmos for Adão, o que não é exagero dizer, teremos o primeiro casal bíblico. Mais adiante, quando o robô estiver na colônia humana, ele encontrará o segundo casal mais importante e estarão os dois Testamentos colocados no filme de forma simbólica.

Já já chegamos nisso. Eva vem procurar por um espécime que viva por fotossíntese, um vegetal, algo que a Terra já não conseguia sustentar. Wall-e encontrara um e o guardara. Repare outro simbolismo: o nosso protagonista, ele próprio se alimenta por fotossíntese, captando luz solar. A planta é, como a barata, uma microrepresentação dele: semente, se não for demais dizer, de si. Quando a mostra para Eva, a busca termina. Ela a coloca no que seria o seu ventre, e fica incomunicável até que seja buscada. É, portanto, o que se pode ver como uma gravidez. Por outro lado, a atitude de Eva também relê a história de Noé: os humanos estão exilados em um meio de transporte (arca/nave) porque seu lugar de coexistência, hábitat, se tornou intolerável (enchente/lixo). Em certo momento, esses humanos recebem de outro ser (pássaro/Eva) a mensagem de que a vida é possível outra vez. Nos dois casos (Noé, Wall-e), esse outro ser traz uma planta.

Na Colônia

Chegando à colônia, vemos o que se tornou a humanidade: um conjunto de pessoas que nem mesmo andam, sendo levados de um lado para o outro por poltronas flutuantes; são todos obesos, tem suas preferências guiadas pela propaganda (“red is the new blue!”) e não se comunicam pessoalmente com nenhuma outra pessoa: uma tela holográfica está na frente de cada rosto e ela é seu comunicador e fonte de informação. É evidente que a imagem geral é uma caricatura do que já somos.

Com a caricatura, a defesa do exercício físico, como há em outras produções infantis, tal como Lazy Town e do valor do indivíduo, mesmo que se opondo à maioria, como outros filmes da Disney: Os Incríveis, O Galinho Chicken Little e outros.

Na colônia, Wall-e vai percorrer longo caminho em busca de Eva. No percurso, conhece dois dos humanos de lá: João e Maria. São os únicos humanos, além do comandante da nave, que conhecerá pessoalmente. Penso que isso pode ser entendido de duas formas. João e Maria são importantes no Novo Testamento. O primeiro é o único apóstolo que ficou com Jesus até a cruz; a segunda é a mãe do messias. Essa interpretação é coerente na medida em que Wall-e, como Jesus, também traz o evangelho — as ‘boas novas’ — é ele quem encontra, afinal, a planta em primeiro lugar.

Uma outra forma de ver esses nomes está na comparação com a história infantil de João e Maria. As duas crianças são deixadas pelos pais na floresta (assim como esses dois acabam no vasto universo, por negligência dos antepassados) e ficam presos a algo que primeiramente se apresenta como um prazer: uma casa de doces ou uma colônia na qual robôs fazem todo e qualquer trabalho. No fim de ambas as histórias, eles irão para casa.

Depois de Wall-e encontrar o capitão, saberemos que Auto, o robô que controla tudo na colônia, quer impedir que a humanidade volte à Terra. O plano de limpar o planeta em cinco anos não funcionou e a diretriz (guarde essa palavra) dos robôs foi mudada; todos deviam permanecer no espaço indefinidamente. Aqui, mais dois elementos importantes: a empresa que criou a colônia se chama Axiom, ou seja, axioma — uma afirmação, uma regra que se pensa verdadeira. Enquanto humanos tem de se livrar da influência dessa Axiom, os robôs tem de contrariar a sua própria programação, sua diretriz, para que, no fim, possam vencer e voltar à terra.

É novamente uma defesa do valor e do pensamento individual, acrescido, penso, de um outro elemento: esse axioma de que temos que nos livrar, é a própria ideia de progresso. Progresso a qualquer custo, mais e mais rápido. É o que criou o mundo em que Wall-e vive e é o mundo em que vivemos.

De volta à Terra

Por fim, a humanidade volta a Terra. Lá, reiniciam a civilização da mesma forma: eles deixam de ser nômades e se dedicam à agricultura. Nos créditos do filme, há referências a diversos períodos históricos — o filme pode ser visto como um releitura de toda essa história. Além destas, há referências também à história do cinema. O filme favorito de Wall-e é Hello, Dolly, de 1969 (quando ele Eva ficam juntos definitivamente, as cenas finais do filme surgem — e é nessas cenas que um dos personagens se declara para uma outra, dizendo que se apaixonou por ela no instante que a viu). Há também a música de 2001: Uma Odisséia no Espaço, de Stanley Kubrick. Creio que a referência que mais é importante é a semelhança de Wall-e com o ET, de Stephen Spielberg. Olhos separados similares, e o valor ao toque das mãos como símbolo da relação humana.

Penso que todas essas histórias são contadas ao mesmo tempo, em camadas diferentes. Daí a força do filme. Uma última afirmação, a mais arriscada e sem provas: Wall-e me parece ser um anagrama de We All, nós todos em inglês. Nós, a humanidade, que temos a missão de resgatar o planeta que destruímos e abandonar conceitos e facilidades.

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

Compartilhe esta postagem:

Participe da conversa