Contardo Calligaris: A Arte inventou o Amor

E, de quebra, também nos ajudou a inventar nossa identidade e personalidade

A ficção preenche os espaços de incerteza e a literatura criou o amor assim como nós o conhecemos. Essas idéias são os pontos altos da entrevista do psicanalista, romancista estreante e colunista da Folha de S.Paulo Contardo Calligaris. Aqui, o autor de O Conto do Amor fala também de relacionamentos e de como a arte retrata este sentimento que, de acordo com ele, é a única coisa com o poder de transformar o indivíduo.

Italiano, Calligaris carrega no sotaque um ou outro detalhe atraente. Diz per que em vez de por que, pronuncia marcadamente o som dos “eles”. Parece repensar o que vai dizer logo no momento em que o diz. Inicia uma frase e corta-a em seguida, como se tivesse achado uma resposta mais completa. O cigarro funciona como um ponto-e-vírgula, tragado num instante, como quem toma fôlego. Sempre os olhos nos olhos do interlocutor. Não demonstra pressa em responder ou explicar.

Quanto a essa última qualidade, é só o que se espera de um psicólogo: ouvir e comentar. Diz-se um contador de histórias. Talvez a filosofia se aplique tanto ao livro, quanto à entrevista, quanto ao amor: dure o quanto durar e crie o efeito que puder. Se chegarmos a bom termo, tanto melhor.

O senhor diz que somos constituídos por ficções e que as histórias que costumamos ler também passam a fazer parte da nossa vida, da nossa história pessoal. Como ocorre esse processo?

Há um exemplo trivial: a gente aprende a amar no cinema e na literatura, no sentido do amor romântico, mas ninguém é predisposto a isso. Antes da literatura, antes do século 18, digamos, amar era uma coisa diferente. Eu, por exemplo, aprendi no cinema onde se colocava o nariz na hora de beijar uma moça — porque, antes disso, era uma pergunta que me colocava seriamente — como é que a gente faz? Como é que se beija? Estou falando só de gestos do amor. A nossa gestualidade amorosa é inteiramente derivada do cinema e da televisão.

E também a postura em relação ao amor?

Ah, sim, sem dúvida nenhuma. O amor começa como fenômeno literário, o amor moderno. Provavelmente, o primeiro texto moderno neste ponto de vista é Romeu e Julieta e continua; muito rapidamente a literatura começa a transformar em um tema, por exemplo, os efeitos dos próprios livros de amor na vida das pessoas. Emma Bovary é um efeito disso, de alguma forma, é uma espécie de Dom Quixote do amor, não é. Sabe, a grande diferença é que, numa sociedade pré-moderna, a vida das pessoas em grande parte é decidida pelas relações de parentesco, que são mais importantes do que as relações afetivas, muito mais. Ser pai, ser filho, é o que importa — amar não é o que importa.

E a ficção também faz parte da construção dessas relações?

Bom, as relações afetivas, para nós, são muito mais importantes do que as relações de parentesco. As relações afetivas são sempre incertas. Então, as questões que a gente se coloca sobre quem somos e outras se tornam questões mais problemáticas, que não têm respostas seguras. Porque o amor do outro, no fim, é uma coisa que não paramos de interrogar; o nosso amor, também, é uma coisa da qual podemos duvidar. As ficções passam rapidamente a ocupar esse espaço sem resposta. Uma criança do século 18 ou do século 17, por exemplo, não tinha o menor interesse em saber se os seus pais se amavam. O pai podia ter uma amante, que pode até ser uma amante oficial, visitar o quarto da mãe — estou falando de uma família da aristocracia — uma vez por mês ou nunca mais. Isso não era uma questão para essa criança. Mas para nós, hoje, é uma questão crucial, que cada um de nós tenta resolver como pode, geralmente, com uma ficção.

As histórias de amor, antes da modernidade, iam até o final feliz. Já na modernidade, passaram a relatar o casamento, a rotina. Na pós-modernidade, vai além do fim da relação, cada vez mais em direção ao cinismo. Concorda com essa idéia?

Geralmente, a literatura moderna privilegia o fim da história com o começo da história amorosa. Ou seja, temos uma enorme literatura e uma enorme quantidade de histórias cinematográficas ao redor do encontro amoroso e do apaixonamento. A literatura sobre a vida do casal depois que se juntou geralmente é comédia, quando não é tragédia. A história de amor é a história dos dois que se apaixonam. Cinderella depois do casamento é Shrek, dito em termos pop (risos).

Então, história de amor é só até o final feliz mesmo?

Não, eu acho que não. Acho que já existe na literatura contemporânea livros sobre a convivência amorosa, sobre o gesto cotidiano. A literatura e também o cinema — narrativas seria mais correto dizer — da gestualidade, da convivência amorosa, é uma coisa que a contemporaneidade produz e tem coisas tocantes nesse material.

O senhor já disse em um artigo que um relacionamento duradouro é uma história que se constrói, uma espécie de aventura.

Não, a primeira coisa que eu diria sobre a questão da duração é que não se trata de um documento. Dá para dizer assim: uma história de amor durar dois anos, dois meses ou trinta e cinco anos. Isso não é critério. O critério da qualidade de uma história amorosa é a qualidade da experiência que foi vivida. Também não é se foi feliz ou se foi dramática — pode ser dramática e ser uma grande experiência. Para mim, o único valor, no fundo, numa vida, é a intensidade e a qualidade da experiência vivida. Então, uma relação amorosa pode durar trinta e cinco anos e ser… pobre, em experiência, e outra pode durar uma semana e ser o centro de uma vida inteira. Acontece isso com o pai do protagonista, no meu romance.

O senhor quer que o seu livro (O Conto do Amor) passe a fazer parte da ficção pessoal do seu leitor? O senhor coloca, vamos dizer, ensinamentos no livro que quer que o leitor assimile?

Claro que quero que meu livro faça parte do livro interior do leitor, mas é a palavra ´ensinamento´ com a qual eu não concordo. Contar uma história é muito diferente do que transmitir idéias ou ensinamentos. Não quero que ninguém pense como eu. Ao escrever um livro de ficção, eu quero, como acontece quando se conta uma boa história, que essa história faça parte da história dele, de quem lê. É diferente do que transmitir um ensinamento.

Sim, mas, por exemplo: o protagonista é contido na relação e não consegue dizer que ama a personagem feminina — ao ler a história o leitor não aprenderia a ver isso nele próprio, se isso existisse?

Isso depende de como ele integra aquilo na sua própria história. Ele pode integrá-lo de mil maneiras diferentes. Eu não acho que o meu propósito, que tenha um propósito, de ‘vou ensinar os tímidos a ousar amar’. Se um leitor, graças ao livro, se autorizar a amar, tanto melhor.

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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